Classificar a COVID como endemia é “muito cedo”, dizem especialistas

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Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil

ANA BOTTALLO, DE SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O Brasil e o mundo ainda não estão em condições de mudar o caráter da COVID-19 de pandemia (quando há uma situação de emergência sanitária global) para uma endemia (estágio de convivência com o vírus, com número estável de casos e mortes). A constatação é de especialistas ouvidos pela reportagem.

No caso do Brasil, a média móvel diária de mortes acima de 800 pelo 15º dia consecutivo torna essa realidade ainda mais distante, dizem os cientistas. Na última segunda-feira (21), o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, falou em “fim do caráter pandêmico” do vírus.

“O que define o fim de uma epidemia ou pandemia é uma série de fatores em conjunto, não apenas um indicador específico de óbitos ou casos”, explica Maria Amélia Veras, epidemiologista da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Algumas doenças, como a Aids, por exemplo, mesmo após quatro décadas ainda não deixaram o caráter pandêmico, lembra. “Uma epidemia continua sendo um problema social muito grande, então ela remete a um apelo emergencial”, diz.

Além disso, diferenças regionais não permitem uma transição em conjunto no planeta. Enquanto em países mais ricos há políticas amplas de testagem de COVID-19 e grande oferta de vacinação, no hemisfério sul há locais que ainda não vacinaram nem 2% das suas populações, como o Haiti.

Outro fator que impede o anúncio do fim da pandemia é a própria novidade que a COVID representa para o mundo, diz Paulo Lotufo, epidemiologista e professor da Faculdade de Medicina da USP. “Só podemos falar de endemia quando conhecemos a tendência histórica da doença bem estabelecida, e ainda não temos isso para o coronavírus”, explica.

Já Julio Croda, pesquisador da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz), acredita que a diminuição da letalidade do coronavírus, com uma incidência hoje equivalente a um vigésimo do que foi observado durante a onda de casos em 2021 com a variante gama, é um indicador de como podemos estar próximos do fim da pandemia.

“Isso não significa ser negligentes com o vírus, mas que a cada ano vamos ter que ter especial atenção para as pessoas com maior risco, os grupos mais vulneráveis, que são os idosos e os imunossuprimidos, que precisem de um reforço vacinal, como é com a gripe”, diz.
“Já para os indivíduos jovens e saudáveis, os estudo mostram que a proteção celular induzida por vacinas segura bem mesmo contra ômicron”, completa ele.

Márcia Castro, demógrafa e chefe do departamento de Saúde Global e População da Universidade Harvard e colunista do jornal Folha de S.Paulo ressalta que precisamos “questionar o que é o fim da pandemia”. “O fim é não ter mais casos, não ter mais atenção especial para aquela doença? Isso ocorreu com o zika em 2015 e depois vimos as consequências da microcefalia nos bebês”, destaca.

“É o fim para quem? Há muitos órfãos da pandemia, pessoas que perderam renda, passando fome, com sequelas de COVID. Quais são os critérios para determinar o fim? Eles são técnicos, de saúde pública, ou eles são sociais?”, indaga ela, afirmando que, apesar da queda de mortes e hospitalizações, quem declara o fim de uma pandemia é a OMS (Organização Mundial da Saúde), não um governo local.

Para Cláudio Maierovitch, médico sanitarista e ex-diretor da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), “pensando do ponto de vista estritamente técnico, não é possível falar de uma endemia durante uma pandemia”. “E existe outro aspecto: uma endemia não necessariamente é melhor do que uma pandemia. Podemos ter doenças endêmicas que causam prejuízos contínuos às populações do ponto de vista sanitário ou financeiro”, recorda.

A própria discussão de se a COVID seria uma doença sazonal ou viria em ondas, como as registradas no passado, acabou dificultando ações de caráter mais global, avalia Maierovitch. “Já vimos outras vezes no Brasil uma subida de hospitalizações e mortes em ondas anteriores e depois uma queda lenta. Na África do Sul, a Ômicron subiu como um paredão, e a descida foi em queda livre. Os Estados Unidos continuam com um patamar muito elevado”, recorda.

“Isso tudo mostra que ainda são necessários mecanismos em todo o mundo para ajudar essa queda a ser mais rápida e consistente, mas não retirar as restrições”, conclui.

Croda, no entanto, vê que há um impacto cada vez menor no sistema de saúde pública, uma vez que os indicadores estão em queda. “A tendência é, com a redução da letalidade e a queda de hospitalizações e óbitos, caminhar para esse período de transição, que não significa zero impacto, mas um impacto previsível”, diz.

Antes da Ômicron, a média móvel de mortes e casos diários no país estava em decréscimo, mas a própria chegada da variante, mais transmissível e com escape vacinal, mostra como essa situação de aparente conforto pode ser perturbada.

Para Ethel Maciel, epidemiologista e professora da Universidade Federal do Espírito Santo, a própria possibilidade de o vírus sofrer mutações e surgirem novas variantes torna prematura essa discussão. “Ficou muito claro que houve um impacto grande na efetividade das vacinas, então precisamos de uma atualização das mesmas e, se isso for feito e elas forem eficazes, talvez a gente possa considerar a mudança de fase”, explica.

Nesse contexto, uma rede de vigilância de casos, como as estruturas sentinelas montadas para o vírus influenza, são fundamentais, aliadas a uma estratégia ampla de testagem, plano que nunca foi implementado de maneira adequada no Brasil.

“Após dois anos ainda não conseguimos fortalecer a vigilância genômica, então dizer que a ômicron será a ‘variante definitiva’ é errado. Nada foi feito para fortalecer essas e outras medidas de saúde pública, como os agentes comunitários e o uso de autotestes como política pública, com foco na desigualdade”, diz Castro.

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