Polícia confirma que homem tem sete boletins por agressões e medida protetiva até para própria filha
Na semana que Mato Grosso do Sul registrou duas mortes de mulheres pelas mãos de seus companheiros, uma sobrevivente de violência doméstica e tentativa de feminicídio buscou ajuda do O Estado. Além de ser vítima de seu algoz e viver momentos de terror por cerca de 1 ano, Maria de Fátima (nome fictício), ainda sofre com a inércia da Justiça, órgãos de proteção e apenas se pergunta: “Quantas mais de nós terá que fugir ou morrer para que a Justiça faça valer as leis de proteção à mulher?
Em um relato detalhado, a assistente social conta como foram os episódios de terror com o seu agressor, que na matéria chamaremos de Eduardo, quando ele tentou tirar a vida dela com uma faca, sendo impedido apenas porque ela fugiu e foi à delegacia, onde, no lugar de acolhimento, encontrou silenciamento e negligência no atendimento que lhe foi oferecido.
“Eu busquei a delegacia por três vezes e tive que ouvir de um investigador que se eu morresse ‘não seria o primeiro e nem o último caso, porque esta é nossa cultura’. No dia da tentativa de feminicídio, o setor de assistência social da cidade me ofereceu hotel ou transporte para o munícipio de onde eu era. A medida protetiva mesmo, eu só conseguiria na Casa da Mulher, em Campo Grande”, resume.
Sobrevivente de uma situação em que muitas não saem vivas para contar a história, a assistente social busca Jjustiça não apenas por ela, mas, também, pelas outras vítimas do agressor. De acordo com a Maria, o homem tem, contra si, ao todo, sete boletins de ocorrência, sendo que, três deles, incluindo o dela, são por violência doméstica e tentativa de feminicídio, e os outros são por ameaça e agressão, mas não se sabe se foi contra outras companheiras.
“Foi só quando eu busquei ajuda na Casa da Mulher Brasileira, que me informaram que outras mulheres já haviam registrado boletim de ocorrência contra ele. A delegada me mostrou uma foto dele sendo preso e me disse que ele já tinha registros por violência doméstica. Não sei quanto tempo ele ficou na prisão, mas foi por ter quebrado o nariz de uma ex-esposa, enquanto ela estava com o filho deles no colo que, na época, tinha apenas 8 meses”, contou, acrescentando que só soube dessa história, porque conseguiu entrar em contato com duas mulheres que ele agrediu e que, hoje, vivem escondidas por medo de que ele faça mais alguma coisa contra elas.
O ciclo de violência foi causado por um homem que se mostrava prestativo, atencioso e, que, inclusive, foi fotografado participando de campanhas contra violência doméstica e feminicídio, incluindo o Agosto Lilás – mês voltado para a conscientização da sociedade sobre a urgência que é proteger mulheres e meninas de todo o tipo de violência, mas, que, em casa, agredia Maria física, verbal e psicologicamente.
Além dessa semelhança com no caso da jornalista Vanessa Ricarte, morta a facadas pelo ex-noivo, Caio Nascimento, e que ficou sabendo do histórico de violências apenas quando buscou por ajuda, Maria também enfrenta um cenário parecido: apesar de, segundo ela, ter sido bem acolhida na Casa da Mulher Brasileira, a inércia da Polícia Militar em Nova Alvorada do Sul, bem como dos órgãos de proteção e do MPMS (Ministério Público Estadual de Mato Grosso do Sul), levam a muitas perguntas como, por exemplo, “por que o agressor ainda se encontra em liberdade?” “quantas precisarão morrer ou fugir para que algo seja feito?” “quando mulheres conseguirão viver em paz?”.
Omissão e descaso
Com uma documentação farta que comprova a busca por ajuda em diversos locais, Maria relembra que o descaso começou ainda em Nova Alvorada do Sul, cidade em que o agressor é conhecido por muita gente, pois é funcionário da prefeitura e atua como educador social no CREAS (Centro de Referência Especializado de Assistência Social).
“Lá eu busquei ajuda com o prefeito, vereadores e também com a assistência social, mas todos são amigos deles”, contou, destacando que foi aconselhada a deixar a cidade e registrar um boletim de Campo Grande, porque, na Casa da Mulher ela conseguiria uma medida protetiva contra ele.
Além do silenciamento por parte dos funcionários do CREAS, Maria de Fátima recorda que em um áudio enviado por um agente da PM, ele admitiu que “uma série de falhas atrapalhou o flagrante naquele dia”.
“Eu como assistente social, sempre fui a voz de muitas pessoas, mas, agora, que eu preciso dessa voz ninguém me dá. Quem vai ser minha voz agora?” questiona.
A denúncia oferecida contra Eduardo por violência doméstica segue aberta no MPMS. No entanto, a denúncia a respeito da negligência sofrida pela vítima foi arquivada.
O retrato da violência contra mulheres em MS
Mato Grosso do Sul registrou mais de 200 mil casos de violência contra mulheres entre 2015 e 2025, segundo dados do novo Painel de Evidências da Violência contra a Mulher, lançado pelo Observatório da Cidadania da UFMS. Embora a rede de proteção tenha avançado nos últimos anos, os números seguem alarmantes e revelam uma realidade preocupante em todo o estado.
De 2015 a 2024, a média anual de vítimas de violência doméstica ultrapassou 19 mil, com pico em 2023, quando 21 mil mulheres foram agredidas. Em 2025, os dados parciais indicam 7,2 mil registros até agora. Os casos de estupro também se mantêm elevados: foram 2,5 mil em 2023 e 2,2 mil em 2024, enquanto 2025 já soma 572 vítimas.
A capital lidera em volume absoluto: Campo Grande acumulou 69.017 casos nesse período, seguida por Dourados (15.710), Três Lagoas (10.694), Corumbá (8.933) e Ponta Porã (6.141).
As tentativas de feminicídio mais que triplicaram entre 2015 e 2022, saltando de 32 para 127 casos. O ano de 2023 teve 126 tentativas, e 2024 registrou 90. Em 2025, já são 19 mulheres que sobreviveram a ataques com intenção de matá-las. Quanto aos feminicídios consumados, o estado contabilizou 44 casos em 2022, o pior índice da série histórica. Em 2025, oito mulheres foram assassinadas por razão de gênero até agora.
Para conter essa violência, o sistema de Justiça concedeu 91.493 medidas protetivas em Mato Grosso do Sul desde 2015, das quais 44.301 foram apenas em Campo Grande. No mesmo período, mais de 128 mil solicitações foram feitas no estado.
Estrutura de atendimento ainda é desigual
Para o coordenador do Observatório da Cidadania, Samuel Leite de Oliveira, o painel representa um avanço na construção de políticas públicas. “Nosso objetivo é promover o diálogo com gestores públicos e com a sociedade civil, fortalecendo uma gestão mais aberta e participativa”, afirma. Segundo ele, a plataforma facilita o acesso à informação, oferecendo gráficos interativos e séries históricas de 2015 a 2025.
Além da violência contra a mulher, o Observatório reúne dados sobre cidadania, pessoas com deficiência e população idosa. O acesso é gratuito pelo site www.observatoriodacidadania.ufms.br, que também disponibiliza leis e decretos estaduais sobre direitos humanos desde 1979.
Tragédias continuam a acontecer
Apesar das ferramentas disponíveis, os casos continuam a acontecer. Só nesta semana, duas mulheres foram assassinadas em Mato Grosso do Sul. Em Cassilandia, o corpo de Thacia Paula Ramos foi localizado por equipes de mergulhadores do Corpo de Bombeiros no rio Aporé,na quarta-feira (14). Ela estava desaparecida desde sábado (10), após uma discussão com o marido, que foi preso preventivamente na terça-feira (13).
O homem, de 43 anos, afirmou que o casal teve uma briga por ciúmes e que a deixou na entrada da cidade. Durante as buscas, foi encontrado um dos sapatos da vítima próximo ao rio, além de uma mancha de sangue. Ele relatou que levou Thacia para um local afastado, onde teriam entrado em luta corporal e ela teria caído nas águas.
A mãe de Thacia começou a se preocupar com o desaparecimento quando ela não compareceu ao almoço do Dia das Mães, que seria em Itajá (GO). Thacia morava com o companheiro há quatro anos e tinha um filho de 20 anos de um relacionamento anterior, que também reside em Cassilândia.
Já no município de Itaquiraí, Simone da Silva, de 35 anos, foi morta a tiros dentro de sua casa na quarta-feira (14). O autor do crime, William Megaioli Ebbing, de 22 anos, é filho do companheiro de Simone e confessou o assassinato.
Segundo relatos da mãe de William, o jovem não aceitava o relacionamento do pai com Simone e a culpava pela separação dos pais. O crime ocorreu após uma série de conflitos familiares e episódios de violência doméstica.
William se apresentou à polícia e entregou a arma utilizada no crime. O pai dele também foi preso, e a mãe solicitou medida protetiva após alegar agressões e ameaças por parte do marido.
Por Ana Clara Santos e Suelen Morales
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