Artigo: Renovar o homem usando borboletas

Jarbas Couto e Lima
Jarbas Couto e Lima

O princípio da dignidade da pessoa humana orienta a proteção dos direitos humanos e vislumbra a construção de uma sociedade justa e inclusiva. Tributário de ampla e histórica preocupação filosófica, esse princípio guarda profunda repercussão política, pois confere fundamento à afirmação da radical igualdade entre os indivíduos e povos, base sobre a qual se assenta a diversidade cultural própria da plasticidade da vida em sociedade. Ao lado do pensamento religioso e das ciências humanas, o pensamento filosófico sobre a dignidade da pessoa humana tornou-se uma barreira contra a violência, a exploração, a humilhação e a miséria.

Na Grécia Antiga, a tragédia – forma dramática grega que se tornou marco da passagem do pensamento mítico para a filosofia – expressou essa preocupação antropológica fundamental. Na tragédia de Ésquilo (525-456 a. C.), “O Prometeu Acorrentado”, a voz de Prometeu prenuncia os homens como “seres de razão, capazes de pensar”, condição que lhes impõe a tarefa de tomar a si mesmos como senhores do seu destino. O termo latino persona, do qual deriva a noção de pessoa humana, tem origem na palavra grega prosopon, que corresponde à máscara utilizada pelo ator (hypokrites) na tragédia grega. Ao traduzir o conceito grego de prosopon para o latino persona, Cícero (106 – 43 a.C.) utiliza este último para designar o ser do homem. Cícero vê na pessoa a racionalidade e a individualidade próprias do homem: “Nós precisamos reconhecer que somos dotados por natureza de dois papéis [personis]: um deles é universal, resultando do fato de sermos, todos, igualmente dotados de razão e superioridade que nos distingue dos animais (…) O outro, porém, é o que é atribuído ao indivíduo em particular”.

Portanto, extraída do contexto teatral grego, a noção de “pessoa” serve à filosofia para designar o ser humano em essência. Na idade média, Boécio (480 – 525) unifica esses dois aspectos mencionados por Cícero e concebe “pessoa” como “a substância individual de natureza racional”, reafirmando assim a racionalidade e a particularidade individual como fundamentos do ser do homem. Porém, foi em Kant (1724-1804) que a dignidade da pessoa humana adquiriu seu fundamento filosófico mais firme. “Pessoa”, para Kant, é uma unidade de consciência, constituída a despeito da diversidade das modificações que lhe possam suceder na vida. Sua dignidade reside em ser “pessoa” radicalmente distinta de “coisa”. Na terceira formulação do conceito de imperativo categórico Kant afirma: “Age de tal maneira que uses a humanidade tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre ao mesmo tempo como fim e nunca simplesmente como meio”. Nesse viés kantiano, o ser humano intrinsecamente representa um conteúdo de relevância ética, na medida em que existe como “um fim em si mesmo”, não como um meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Diferentemente das coisas, os seres humanos são “pessoas” cujo imperativo categórico determina respeitar enquanto essência, não apenas enquanto seus motivos e ações contingentes. Daí a afirmação da dignidade humana como valor em si mesmo, valor absoluto em oposição ao valor relativo das coisas, que podem ser usadas, vendidas e trocadas.

Já Heidegger (1889-1976), com a noção de ser-no-mundo, exprimiu a dependência das circunstâncias e a incompletude do ser do homem, bem como seu devir contínuo como um ser aberto ao novo. O ser do homem é essencialmente mutável. O que nos remete ao poeta pantaneiro Manoel de Barros: “A maior riqueza do homem é a sua incompletude. Nesse ponto sou abastado. Palavras que me aceitam como sou – eu não aceito (…). Perdoai, mas eu preciso ser Outros. Eu penso renovar o homem usando borboletas.” Como as ciências humanas têm demonstrado, o meio cultural em que nascemos e vivemos forma nossas crenças, valores e preconceitos. Igualmente, nos permite escolhas entre possibilidades circunstanciais de modificar nosso incompleto e inacabado ser e colocá-lo em conexão com o princípio da dignidade da pessoa humana. Resta-nos, portanto, a liberdade das borboletas.

 

Por  Jarbas Couto e Lima, Professor titular da Faculdade de Ciências
Humanas da UFGD.

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