Cineastas sul-mato-grossenses são premiadas em mostra nacional com obras que celebram memórias e saberes indígenas por meio do audiovisual
A produção audiovisual de Mato Grosso do Sul segue ganhando destaque além das divisas do estado. As cineastas Lua Maria, de Campo Grande, e Arlenne Jorge João de Douradina, foram premiadas na “5ª Mostra Audiovisual do Museu da Pessoa – Vidas Indígenas”, realizada em São Paulo. O evento ocorreu no final de agosto e selecionou 12 obras entre mais de 200 filmes inscritos de todo o país, reconheceu os trabalhos das sul-mato-grossenses com prêmios de R$ 4 mil cada.
Além do reconhecimento financeiro, os curtas-metragens das realizadoras agora integram a exposição permanente do Museu da Pessoa, com exibição gratuita e online na plataforma oficial da mostra (mostra.museudapessoa.org). Ao todo, 31 curtas de diferentes regiões do Brasil foram disponibilizados ao público, fortalecendo a visibilidade de narrativas diversas e potentes.

Jessika Rabelo que representou Lua Maria na premiação para pegar o prêmio – Foto: Acervo Lua Maria
A mostra contemplou quatro categorias distintas: Criadores Indígenas, voltada a obras produzidas e protagonizadas por indígenas; Livre, aberta a diferentes perfis e estilos de realização; Novos Talentos, dedicada a jovens cineastas em formação; e Júri Popular, definida por votação do público. As produções sul-mato-grossenses ganharam destaque entre os vencedores: Arlenne Jorge João foi premiada na categoria Criadores Indígenas, enquanto Lua Maria conquistou o prêmio na categoria Novos Talentos.

A diretora de Mergulho
Ka’apor ,Lua Maria – Foto: Acervo Lua Maria
Rubro, Cecília da Silva Brito
Natural de Douradina (MS), Arlane Jorge João carrega em sua trajetória o legado de luta e identidade de seu povo. Filha das lideranças indígenas Ezequiel João e Adelaide Jorge (in memoriam), ela vive atualmente na retomada Guyra Kambi’y, junto ao pai e às irmãs. Formada em Turismo pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), unidade de Dourados, atua nas áreas de esporte, cultura e lazer, sempre em diálogo com sua ancestralidade.
Na 5ª Mostra Audiovisual do Museu da Pessoa, Arlane foi premiada na categoria Criadores Indígenas com o curta sobre Cecília da Silva Brito, indígena do povo Kubeo, nascida na Colômbia e residente na região do Rio Uaupés, no noroeste amazônico. A obra resgata memórias de Cecília, seus laços de sangue e a vivência marcada por tradições e resistências.
Para a reportagem, a participação na 5ª Mostra Audiovisual do Museu da Pessoa foi resultado de um encontro natural com um projeto que já acompanhava pelas redes sociais. A cineasta sul-mato-grossense conta que se emocionou profundamente ao assistir, pela primeira vez, ao depoimento de Cecília da Silva Brito, indígena do povo Kubeo.

Arlane Jorge João
diretora de Rubro – Foto: Arquivo Pessoal
“Eu já seguia o Museu da Pessoa no Instagram desde que surgiu e, quando vi a oportunidade, me interessei imediatamente.A história de Cecília mexeu comigo. Ela fala sobre não poder estudar quando era criança por medo de deixar o pai sozinho, e isso me lembrou muito da trajetória da minha mãe, que também não pôde estudar por esse mesmo. A dor dela também é nossa”, resume.
Transformar o depoimento de Cecília em um curta-metragem de apenas três minutos foi, para Arlenne Jorge João, um dos maiores desafios do processo criativo. O vídeo original, com cerca de 15 minutos, trazia uma narrativa intensa e comovente do início ao fim, o que exigiu uma curadoria sensível para manter a essência da história.
“Foi difícil resumir uma história tão rica em tão pouco tempo. Não é simples transmitir toda essa força em apenas três minutos.Significa muito para mim. Nós, mulheres indígenas, precisamos ser reconhecidas, tanto nacional quanto internacionalmente. Muitas vezes temos talento e histórias potentes para contar, mas faltam informações e acessos que dificultam nossa participação”, explica Arlenne.
Mais que uma obra audiovisual, o curta “Rubro” é, para Arlenne, uma forma de preservar memórias e fortalecer saberes ancestrais. Ela vê no audiovisual uma ferramenta de resistência e educação dentro das comunidades indígenas. Animada com sua estreia, pretende seguir produzindo, ao lado das irmãs no coletivo Guyra Kambi’y, que também levou à mostra um filme sobre o pai delas, o líder indígena Ezequiel João.
“O filme resgata uma infância que não volta, mas vive na memória. Quero continuar contando as histórias dos nossos povos e mostrar a força da nossa cultura”.
Mergulho Ka’apor
Vencedora na categoria Novos Talentos, a campo-grandense Lua Maria assina a direção de Mergulho Ka’apor. O vídeo, de linguagem experimental, é um rito visual e sonoro conduzido por Maria Lucia, mulher indígena do povo Ka’apor. Em uma imersão entre natureza e espiritualidade, a obra conecta ancestralidade, som e memória, traduzindo o olhar sensível e plural da jovem multiartista sul-mato-grossense, que atualmente estuda Audiovisual na UFMS e desenvolve projetos voltados à valorização das culturas afro-indígenas e periféricas.
O encontro com o depoimento de Maria Lucia Ka’apor, indígena do povo Ka’apor do Maranhão, foi decisivo para a criação do curta, que mistura imagem e som em uma videoarte sensorial. O curta foi produzido a partir de arquivos de Maria Lucia fornecidos pelo Museu da Pessoa.

Foto: Arlane Jorge João
A afinidade com o Maranhão, onde Luanna viveu parte da infância, e a potência simbólica do som da flauta tocada por Maria Lucia, inspiraram a diretora a construir uma obra que une espiritualidade, ancestralidade e natureza.
“Ela é uma das poucas mulheres que ainda preservam e carregam o saber ancestral do toque da flauta, uma prática considerada sagrada por seu povo. Diversos relatos me inspiraram, especialmente o dela, que mencionou, que não se deve tocar a flauta na beira do rio, pois ela veio de um grande encantado, e esse encantado pode não aceitar esse tipo de som naquele espaço”.
Ela complementa que esses e outros elementos presentes na entrevista foram fundamentais para a construção do texto do filme, que nasceu a partir das falas de Maria Lúcia e foi pensado para dialogar poeticamente com imagem e som, resultando em uma narrativa imersiva e autoral.
“A temática da mostra deste ano era “vidas indígenas”, e por isso decidi construir o trabalho em parceria com a artista sonora e pesquisadora Mariana Terena, indígena do povo Terena aqui de MS e mestranda em Música pela UFMS. Trabalhamos juntas no som do curta, o objetivo de unir a ancestralidade do toque da flauta de Maria Lúcia ao texto e à imagem, com muito cuidado e respeito”, conta.
Além de destacar a importância da representatividade, Luanna vê na Mostra do Museu da Pessoa um espaço fundamental de preservação da memória indígena por meio do audiovisual, não apenas como produção artística, mas como ferramenta educativa e de acesso público, capaz de multiplicar vozes e histórias de forma duradoura.
“Pretendo continuar pesquisando essa temática em projetos futuros, especialmente na videoarte experimental. Trabalho em coletivos, porque acredito que a arte é uma forma poderosa de conexão. Essa experiência foi muito gratificante para mim e para o Mato Grosso do Sul, pois fui a única representante do estado na mostra, e levar essa discussão para um museu nacional é muito importante”, finaliza.
Sobre o Museu

Foto: Arlane Jorge João
Fundado em 1991, em São Paulo, o Museu da Pessoa é um museu virtual e colaborativo dedicado a registrar e preservar histórias de vida como forma de valorizar a memória social. Com um acervo digital que reúne mais de 18 mil depoimentos e cerca de 60 mil imagens e documentos, a instituição busca transformar relatos pessoais em fonte de conhecimento, conexão e identidade coletiva. Saiba mais em e confira os curtas das vencedoras em www.museudapessoa.org.
Por Amanda Ferreira
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