Projeto reúne vivências, ressignifica o esporte e oferece segurança, saúde e afeto no mês do orgulho LGBTQIA+
Na infância, Luan, João e Théo jogavam bola como qualquer criança, mas sem saber muito bem onde pertenciam. O futebol sempre esteve presente, mas o conforto em praticar o esporte só apareceu anos depois, já adultos e cientes de que eram transsexuais. Cada um à sua maneira, eles descobriram a própria identidade, enfrentaram o isolamento, os olhares tortos e a burocracia que pesa sobre quem quer apenas existir. Hoje, se encontram com outros meninos trans numa quadra pública de Campo Grande, onde criaram, juntos, o Fut Trans.
O grupo nasceu em 2019, como uma parceria entre o IBRAT (Instituto Brasileiro de Transmasculinidades) e o coletivo Diversidade Tucano. A proposta inicial era simples: reunir homens trans para jogar futebol em um espaço de segurança e sem julgamentos. A prática logo se transformou em rede de apoio. “A gente não vem só pra jogar. A gente conversa, toma um tereré, fala sobre saúde, acolhe quem tá começando a transição”, explica Théo Toledo, 30 anos, um dos coordenadores do projeto.
O orgulho de existir
O Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+ é celebrado em 28 de junho, em memória à revolta de Stonewall, em 1969, uma série de protestos considerada o ponto de partida para o movimento moderno pelos direitos da comunidade. A sigla LGBTQIA+ reúne lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, queer, intersexuais, assexuais e outras identidades.

Criado em 2019, o
elenco do Fut Trans
está em crescimento – Foto: Arquivo Pessoal
Para pessoas transgêneros, o processo de transição vem muitas vezes cercado por solidão, exclusão e resistência. Foi assim para Luan Henrique, 30, um dos primeiros homens a passar pela transição de gênero em Campo Grande. “Fiquei três anos sem sair de casa como homem trans. Tentava passar por cis, porque era mais fácil. Só depois comecei a me expor mais, contar minha história e acolher outros meninos”, conta.
Luan é assessor técnico da Subsecretaria Estadual de Políticas Públicas LGBT e usa sua trajetória como referência para quem está começando. “Quero que os meninos de hoje consigam fazer a transição sem ter que abrir mão do sonho de jogar futebol profissional, por exemplo, como foi comigo.” Ele começou sua transição ainda jovem, quando mal se falava em homens trans em Mato Grosso do Sul. Hoje, virou referência para quem chega depois.
Théo também se descobriu trans ainda na adolescência, depois de ver uma reportagem nas redes sociais. “Fui pesquisar, segui outros meninos, fui me identificando e me entendi”, conta. Segundo ele, a família demorou a entender e aceitar o processo de transição, mas hoje o respeita como é.
João Vilela, 33, se reconheceu homem trans aos 23 anos, perto do fim da graduação de Psicologia, depois de ver um vídeo na internet. Sem referências locais, buscou apoio em materiais de fora. “Na época, não se falava sobre isso nem na faculdade. Foi um processo de muito estudo, terapia e paciência para incluir minha família nisso tudo”, relembra. Hoje, atua como psicólogo na área e ajuda a construir uma rede de acolhimento para outros homens trans. João era goleiro na adolescência. Quando se entendeu como homem trans, achou que teria que abandonar a prática. “Parei de jogar. Não me sentia seguro. Mas no Fut Trans, agora consigo jogar todos os tempos, recuperei o fôlego, a saúde e a alegria de estar em quadra.”
Para os três, o esporte é mais que uma paixão antiga, mas uma forma de mostrar que podem ocupar qualquer espaço. O Fut Trans, que começou com poucas pessoas, hoje é um ponto de encontro para fortalecer laços, trocar experiências e provar que existe lugar para corpos trans no esporte. “A gente se sente seguro, alguns até jogam sem camisa, ri, se abraça. É sobre pertencer”, resume Théo.
Representatividade importa
Embora o esporte, e principalmente o futebol, ainda seja um ambiente marcado por preconceitos, a presença de atletas LGBTQIA+ em diversas modalidades mostra que é possível ocupar e transformar esses espaços. A jogadora Marta, maior artilheira da história das Copas do Mundo, é casada com uma mulher e fala abertamente sobre a importância da visibilidade. No vôlei, a atleta Tiffany Abreu foi a primeira mulher trans a atuar na Superliga feminina, ainda enfrenta resistência, mas abriu portas. No futebol masculino, o ex lateral esquerdo da Seleção Brasileira, Richarlyson, já falou publicamente sobre sua bissexualidade e sobre como o esporte precisa ser mais acolhedor com atletas LGBTQIA+.
Torcidas organizadas também têm se articulado para combater o preconceito nos estádios. Das 10 maiores torcidas LGBTQIA+ do mundo, cinco são brasileiras, segundo levantamento do Coletivo Canarinhos LGBTQ+. Iniciativas como a extinta Coligay, do Grêmio, primeira torcida LGBTQIA+ brasileira, criada nos anos 1970, a Galo Queer, do Atlético-MG e a PorcoÍris, do Palmeiras, mostram que a paixão pelo futebol não tem gênero, nem orientação sexual. Essas presenças, dentro e fora de campo, ajudam a construir um futuro em que pessoas trans, gays, lésbicas, bissexuais e queer possam torcer e jogar com liberdade.
Mais do que futebol
Nos encontros do Fut Trans, além dos jogos, há rodas de conversa com profissionais de saúde, palestras e apoio jurídico para os atletas, resultado de parcerias com a Defensoria Pública e outras instituições. “A gente tenta alcançar quem está isolado. Nem todo mundo tem acesso à informação, à documentação, à rede de apoio”, explica João. O grupo, que começou com dois ou três participantes, hoje reúne cerca de 15 homens, de 16 à 35 anos, e já articula a criação de outros times pelo interior do estado.
As partidas acontecem em quadras públicas, o que nem sempre garante segurança. Em uma das ocasiões, o grupo foi alvo de um jogador externo, que já estava no local, e entrou no jogo apenas para provocar. “Ele fez alguns comentários desnecessários, jogou por um tempo com a gente e fez umas entradas brutas para machucar mesmo. A gente já fica esperando a agressão, por sermos transexuais”, diz Luan. Ainda assim, a resposta veio na forma de união.“Tentamos conversar com ele, explicamos a problemática. Ali é um espaço nosso como de qualquer outra pessoa.”
Um futuro possível
Para Theo, o espaço é mais do que lazer, é sobre pertencimento. “A transição é um processo muito solitário. Mesmo entre homens trans, cada história é única. Mas quando a gente se junta, vira uma família. E ninguém fica sozinho. Sempre que conversamos, um se identifica com alguma situação e assim vamos aprendendo.”
Projetos como o Fut Trans abrem caminho para que novos atletas trans não precisem escolher entre o sonho e a identidade. Luan resume em forma de apelo: “O esporte tem verba. O esporte trans também precisa. A gente quer jogar, quer viver, quer ser respeitado.”
A próxima partida do grupo acontece neste 28 de junho, data em que o orgulho LGBTQIA+ é celebrado em todo o mundo, às 15h, na Praça das Araras, em Campo Grande. Mas para os meninos do Fut Trans, cada dia em quadra já é, por si só, um ato de resistência.
Por Mellissa Ramos
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