Pressão e invisibilidade, árbitros relatam desafios

Val Lopes, handebol – Foto: Arquivo pessoal
Val Lopes, handebol – Foto: Arquivo pessoal

No seu Dia, trio cita preconceito, desvalorização e paixão pelo esporte

 

Nesta quinta-feira (11), o Brasil celebra o Dia do Árbitro, data criada em homenagem à fundação da primeira escola de árbitros do país. A lembrança busca dar visibilidade a profissionais indispensáveis para a prática esportiva, mas quase sempre colocados em segundo plano.

Em Mato Grosso do Sul, a função reúne cerca de 40 árbitros no handebol, 50 no voleibol e pouco mais de 60 no futebol profissional e de base. Os números revelam uma presença expressiva, mas contrastam com a invisibilidade e a falta de valorização da categoria, frequentemente alvo de críticas e pressões.
Nesta reportagem especial, as trajetórias de três árbitros sul-mato-grossenses ajudam a entender o peso do apito.

Resistência feminina

Ex-atleta de alto rendimento e hoje diretora de arbitragem da FHMS (Federação de Handebol de Mato Grosso do Sul), Val Lopes, 48 anos, construiu sua carreira em espaço historicamente dominado por homens. Depois de defender seleções municipal, estadual e até a brasileira, pendurou as “chuteiras” e decidiu estudar na Alemanha para se especializar como treinadora.

Voltou às quadras com o apito e fez história como parte da primeira e única dupla feminina de árbitras sul-mato-grossenses de nível nacional, ao lado de Andreia Albuquerque, hoje presidente da FHMS. A função trouxe conquistas e enfrentamentos. “Muitas vezes duvidam da nossa capacidade só por sermos mulheres. Já enfrentei desconfiança e comentários depreciativos, mas isso me fortaleceu”, afirma.

Além de arbitrar, Val coordena os 40 árbitros de handebol do Estado. Para ela, a função vai além de aplicar regras. “O árbitro ajuda a desenvolver caráter e disciplina nos atletas. Nossa responsabilidade é formar pessoas para o esporte e para a vida”.

Apesar do reconhecimento, ela ainda vê sinais de desigualdade. “Mulheres precisam trabalhar o dobro para conquistar espaço. Quando escalo meninas mais novas, por exemplo, muitas vezes sinto a desconfiança inicial, como se um homem fosse mais preparado. Isso mostra que ainda temos um caminho longo”, observa.

Val enxerga a arbitragem como missão educativa e transformadora. “Ela forma caráter, ensina disciplina, amplia consciência. Pode levar a lugares que você nunca imaginou. Eu mesma devo muito do que sou à arbitragem”.

Entre a areia, a quadra e o apito

Jean Cláudio da Silva, voleibol – Foto: Arquivo pessoal

No voleibol, cerca de 50 árbitros são federados em Mato Grosso do Sul, mas apenas 30 atuam regularmente. Jean Cláudio da Silva, 27 anos, divide a rotina entre ser árbitro, professor de educação física e atleta.
Ele começou como jogador, incentivado pela tia em uma praça do bairro onde morava. Mais tarde, colegas e professores o encorajaram a fazer o curso de arbitragem, concluído em 2022.

Desde então, Jean atua em campeonatos e sonha chegar ao nível regional, o mais alto da Federação. “Atualmente sou aspirante regional. Depois, do regional, é preciso fazer um curso da CBV (Confederação Brasileira de Voleibol) para se tornar aspirante a nacional. Eles te convocam, tem uma burocracia a mais, até chegar ao nacional.”

A experiência como atleta influencia diretamente sua postura em quadra. “Eu tento falar com os jogadores da maneira que gostaria que falassem comigo. A arbitragem é diálogo, explicar uma decisão, conversar. Isso faz diferença”, afirma.

Para Jean, cada modalidade exige uma leitura diferente. “Na praia, a interpretação é instantânea, o jogo muda a cada lance. Na quadra, a pressão vem muito dos técnicos e da torcida, e o árbitro precisa ter uma visão macro do jogo.”

Jean também critica a falta de valorização. “O árbitro é lembrado só quando erra. Aqui temos profissionais que chegam à Superliga, Copa do Brasil e até competições internacionais. Isso mostra a qualidade da nossa arbitragem, mas ainda falta reconhecimento.”

Apesar da rotina exaustiva, ele se mantém motivado. “A arbitragem me ensinou a lidar com pressão, com respeito, com ética. Não é fácil estar lá em cima, com todos olhando e julgando, mas é gratificante.”

O peso do apito no gramado

Francis Bandeira, futebol – Foto: Arquivo pessoal

No futebol, os desafios são ainda maiores. Mato Grosso do Sul tem nove árbitros e 11 assistentes no quadro da CBF, além de 27 estaduais e 15 assistentes.

Em âmbito sul-mato-grossense está Francis Bandeira, 35 anos, que iniciou a carreira em 2019 após experiências como jogador e organizador de campeonatos amadores.

Em agosto deste ano, Francis viveu o episódio mais doloroso da carreira: sofreu injúria racial em partida do Estadual Sub-15. “Um dirigente se aproximou do alambrado e gritou: ‘toma vergonha nessa cara preta, seu safado, bandido’. Foi um choque. Minha vontade era reagir, mas segui o protocolo e tentei manter o jogo”, relembra.

O caso foi denunciado e está em andamento na Justiça. Para ele, é essencial que os árbitros não silenciem. “Se a gente se cala, legitima o racismo. Precisamos denunciar sempre, mesmo sabendo que nem sempre teremos o respaldo que deveríamos.”

Além da luta contra o preconceito, Francis aponta outros obstáculos que marcam a arbitragem. A ausência de garantias trabalhistas, segundo ele, é o maior deles. “A arbitragem não é profissão no Brasil. A gente presta serviço, sem registro ou segurança. Se trabalha, recebe; se não, não recebe. Mesmo assim, precisa estar em forma e atualizado com as regras”, afirma.

O calendário irregular, que concentra jogos em determinados períodos do ano, também afeta a renda. “Muitos conciliam a arbitragem com outros trabalhos, porque ela sozinha não sustenta.”

Mesmo diante das adversidades, Francis mantém o compromisso com a função. “O mais gratificante é controlar uma partida e conduzi-la com justiça. Quando termina o jogo e as crianças pedem para apitar ou soprar o apito, isso mostra que nosso trabalho inspira.”

Movidos à resiliência

Por trás de cada decisão polêmica, há trajetórias de resistência. Seja contra o machismo, a desvalorização ou o racismo, a arbitragem exige preparo constante e resiliência.

“Sem árbitro, não existe jogo. Quanto mais cedo isso for compreendido, mais saudável será o esporte”, resume Jean. Francis completa: “Os xingamentos dizem mais sobre quem fala do que sobre nós. Nosso trabalho fala por si, e é isso que importa.”. Para Val, a mudança depende de respeito. “O torcedor precisa entender que árbitro não é inimigo, é parte do espetáculo”.

 

Por Mellissa Ramos

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