[Texto: Brenda Leitte, Jornal O Estado de MS]
Em MS, nenhuma medida contra ou a favor sobre a medida ainda foi declarada
Novas discussões sobre o uso da linguagem neutra nas escolas surgiram. O assunto voltou à tona na semana passada, após o STF (Supremo Tribunal Federal) formar maioria para derrubar uma lei do Estado de Rondônia, a qual proibia a linguagem neutra na grade curricular, no material didático das escolas públicas e privadas do estado e em concursos públicos.
O recurso vem ganhando popularidade desde que ativistas LGBTQIA+ passaram a questionar a variação binária de gênero no português. Quem não se identifica com o pronome feminino ou masculino encara como violência uma designação do tipo.
Em Mato Grosso do Sul, nenhuma medida contra ou a favor a respeito do uso da linguagem neutra foi declarada, apesar da repercussão nacional sobre o tema. De acordo com a SED (Secretaria de Estado de Educação), ainda não há discussões sobre o assunto nas escolas estaduais. A O Estado, a secretaria alegou ainda que cabe a eles seguirem com aquilo que está determinado por lei, sucedendo a determinação do Conselho Estadual de Educação, entidade responsável pelas normativas.
Procurado pela reportagem, o conselho explicou como funciona em Mato Grosso do Sul em relação à linguagem neutra nas escolas. “Sobre a Língua Portuguesa consta vigente no Estado de Mato Grosso do Sul a Lei nº 5.820 de 29/12/2021, publicada em 30/12/2021, que torna obrigatória a utilização da norma culta da Língua Portuguesa nos instrumentos de aprendizagem utilizados no ambiente escolar, nos documentos oficiais e na confecção de materiais didáticos, como forma de padronização do idioma oficial do país”, destacou.
A entidade expôs que é a partir dos parâmetros curriculares editados pelo Ministério da Educação que as equipes pedagógicas da Secretaria de Estado e Municipais de Educação norteiam todo o trabalho das equipes pedagógicas. “A estruturação do material, currículo, conteúdos programáticos, metodologias de ensino ou modo de exercício da atividade docente a ser utilizado pelo profissional do magistério com o alunato, são definidos pelo órgão responsável”, salientou.
Questionado se o uso da linguagem neutra nas escolas de MS já havia sido discutido em reuniões, o conselho informou que “por se tratar de matéria já regulada pela União e pelo Poder Executivo, este colegiado não é parte legítima para discutir sobre a matéria”, concluiu.
Desigualdade de escolas
Para a doutora em Educação, professora Ângela Maria Costa, a discussão sobre o tema é inviável, tendo em vista a situação atual do país. “Infelizmente, nossa realidade é de que o brasileiro não sabe usar nem a linguagem oficial. O certo seria primeiro ser alfabetizado de verdade. Muitos são analfabetos funcionais, os quais não entendem sequer um parágrafo do que leem, só juntam as letras. Acredito que estão ‘marcando terreno no lugar errado’. Ou seja, há tantas coisas para serem ajustadas na educação brasileira, antes de receberem aditivos”, iniciou.
Levantando a questão da desigualdade entre as escolas públicas e privadas, a professora fez menção às novas normas de aprovação adotadas pelas Secretarias de Educação. “São diversas as situações de educação no país que não estão resolvidas, como a desigualdade que existe entre escolas públicas e privadas. Muitas crianças, sendo a maioria, foram passadas para as séries seguintes, por aprovação automática. Essas crianças estão seguindo em frente sem saber nada, sem ter aprendido nada. Tem criança chegando na 5ª série sem saber ler e escrever. A linguem neutra nas escolas é um assunto, para mim, fora do contexto, que não há a mínima necessidade quando comparada a esses outros problemas”, ressaltou.
Se referindo a volta às aulas, a doutora em Educação argumentou quanto às condições precárias em que algumas escolas de Campo Grande se encontram atualmente.
“As pessoas querem ser moderninhas, e começam a aprovar coisas que não possuem nenhum interesse. Temos outras situações no país sobre a educação, que precisam ser resolvidas de forma imediata. Recentemente, vimos crianças que foram para aula com as escolas cheias de mato, isso mostra o descuido e relaxo para com as crianças, a falta de preocupação com esses alunos. Temos coisas muito mais importantes e urgentes para serem discutidas e aprovadas pelas autoridades cabíveis. Sou totalmente contra essa discussão de linguagem neutra nas escolas”, defendeu.
Apresentando o índice de analfabetos no Brasil, a professora chamou a atenção para o ensino básico para as crianças de hoje, futuro do país. “É necessário mesmo que as pessoas aprendam a ler e escrever. O índice de analfabetos funcionais no país é imenso, está quase com 40%. Diante disso, as pessoas tinham que colocar a cabeça no lugar, para funcionar. As pessoas precisam se classificar no ‘A’ ou no ‘O’, e fim. Precisa ser ‘todes’? Ela tem o direito de escolha, sim, de querer ser chamado de tal forma porque se identifica de tal maneira, mas levantar essa bandeira de ‘todes’ é sem cabimento. Se tornou uma discussão desnecessária, mudando o foco das coisas que realmente importam e precisam ser discutidas”, indagou à reportagem.
O outro lado
Defendendo a linguagem para “todes”, a doutora em Linguística pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), Jana Viscardi alega que uma das “reclamações” sobre o emprego do gênero neutro ou de escolhas que, por exemplo, questionem o masculino genérico, é justamente o fato de que tais formas “deturpariam” a língua portuguesa.
“Assim, muitas vezes as reclamações sobre mudanças na língua e, nesse caso, sobre o uso do gênero neutro revelam aquilo que esperamos das outras pessoas e, com isso, o poder que acabamos por exercer sobre a existência dessas pessoas. Há também aí uma discussão que perpassa a ‘moral’, aquilo que se espera da comunidade em que vivemos. No entanto, como sociedade e como língua, somos mais do que apenas a forma como vemos a realidade no nosso entorno. Há mais no mundo do que nossos próprios olhos – e ouvidos – alcançam. E reconhecer isso não impede sua existência no mundo e o uso da língua como você a conhece, caso esteja confortável com ela.
A linguística ressalta que essa representação idealizada da língua como algo autônomo e distante da realidade social contrasta com as transformações vividas pelas línguas do mundo todo e que derivam também, mas não só, da atuação das comunidades de falantes sobre a língua. Como num cabo de guerra, aqueles que são contrários às mudanças se impõem sobre a língua (e falantes) como se a eles ela pertencesse.”
Nesse processo de negação, muitas pessoas afirmam que o neutro ‘nem sequer existe em português’. Mas basta passear por publicações nas redes sociais, em revistas e em
teses e artigos científicos, para encontrar diferentes manifestações da forma neutra. Essa afirmação nos faz retornar para esse lugar da língua idealizada, descrita na gramática normativa, e que não documenta tudo o que está sendo produzido hoje pelos falantes da língua portuguesa.
É possível afirmar, com certeza, quais dessas formas se estabelecerão como fixas na língua? Não. Mas esses movimentos levam os falantes a pensar e repensar seus usos. Além disso, perguntar-se se essas formas permanecerão na língua daqui a 20, 30 anos é diferente de negar ou impedir sua ocorrência hoje”, enfatizou.
Contrapondo argumentos de opositores, Jana acredita que, embora o país enfrente milhares de outros problemas, é possível dividir atenção entre eles. “Se você é da turma do ‘e a fome no mundo?’, ‘e os analfabetos?’, saiba que uma dada reflexão e ação no mundo não impede, nem tampouco diminui outra, ou outras. Assim, segue sendo possível reconhecer o emprego do gênero neutro e, ao mesmo tempo, pensar e agir para dirimir o número de analfabetos no mundo e o número de pessoas que estão abaixo da linha da pobreza. É sempre importante lembrar que esta é uma discussão ampla, que permite diversas abordagens e aprofundamentos. Essa conversa que estabeleço, pretende agregar e não esgotar as reflexões, e ações, em torno do tema”, finalizou.
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