Cartunista como profissão e escultor como paixão

Foto: Marcos Maluf
Foto: Marcos Maluf

De volta à Capital para revitalização de estátua de Manoel de Barros, o artista Ique Woitschach contou ao jornal O Estado sobre sua relação com o poeta, sobre a carreira e a política

 

“De tarde um homem sorri. Se eu me sentasse a seu lado, saberia de seus mistérios”. Este é um trecho do poema ‘Eu não vou perturbar a paz’, de Manoel de Barros, que pode ilustrar a presença do poeta em forma de estátua, localizada na Avenida Afonso Pena. Sorrindo, sentado em um sofá, sob a sombra de uma árvore do centro de Campo Grande, a obra foi realizada pelo artista Ique Woitschach, em 2017. Ele está em Campo Grande para realizar a revitalização de sua própria obra, vandalizada em 2021 e que teve o pé esquerdo arrancado. A estátua foi feita em bronze, para comemorar o centenário do poeta, além de representar um símbolo da literatura e legado do escritor.

Segundo Ique, além da colocação de um novo pé na obra, a estátua receberá novos óculos, limpeza, retoque no bronze, devido ao desgaste natural, nova pátina (composto químico aplicado na superfície de um metal), iluminação cênica de destaque e câmeras para evitar novos vandalismos. “O processo tem todo um momento onde vamos fazer uma ‘cirurgia’ abrindo a perna até o joelho para fixar o pé de forma que ele não seja mais vandalizado e também, alguns reparos na escultura como um todo”, disse Ique. “Eu contratei um Light Designer aqui de Campo Grande especializado em espetáculos e teatro, e ele fez um projeto que vai colocar o Manoel a noite no palco iluminado que ele merece. A noite ele vai ter luz para ser fotografado, vai ter câmeras para filmar os possíveis vândalos, para serem identificados e punidos, por agredir o patrimônio público”.

Poeta do coração

Em entrevista ao jornal  Em entrevista ao jornal O Estado, o artista campo-grandense contou que possui uma ligação de infância com as proximidades onde a estátua de Manoel de Barros foi concebida. “Com dez anos, ali na esquina com a Pedro Celestino e Afonso Pena, tinha uma árvore que foi cortada, e ficou só o tronco dela seco ali. E eu me lembro, na década de 70, eu passei uma vez por lá e vi um cara esculpindo essa madeira, e ele fez uma grande mão do tronco de árvore. Eu vinha de casa [para ver], descia a travessa Pepe Simioli, descia na Pedro Celestino, e vinha direto aqui, passava quase o dia todo acompanhando, vendo e aprendendo com o cara esculpindo em madeira, e sonhava que um dia seria escultor e que teria uma obra nessa mesma avenida, e está aí agora”, lembra.

Para Ique, a estátua de Manoel de Barros possui um significado diferenciado em seu acervo de trabalhos. “O Manoel é uma peça muito especial, é a minha primeira peça na cidade de Campo Grande, na cidade onde nasci, em uma rua que conheço muito bem”, disse. Em seu local, preferido, o sofá de casa, a obra foi concebida para ser interativa com a população, para que a arte atinja o maior número possível de pessoas. “A ideia é interagir com ele. Eu fui lá na casa dele, e tinha um sofá de três lugares, que ele só recebia as pessoas nesse sofá, e que a onde ele sentava tinha até o formato dele [risos]. Representa o sofá da casa dele, para falar de arte, já que a interatividade é fundamental”.

“Eu sou um artista e escultor contemporâneo. Acho que a arte tem que estar onde o povo está, não adianta eu pegar e fazer a minha arte e colocar em um museu. O Manoel, por exemplo, pra mim é o maior poeta do mundo, um ícone nacional. O trabalho dele é espetacular, genial; quando ele morreu já era pouco conhecido, se ninguém ver, ele vai ser esquecido, e a obra desse homem não pode ser esquecida. A forma de fazer com que o motorista do ônibus, a menina que trabalha na farmácia, a outra chapeira na loja de sanduíche, o aluno da escola pública terem acesso a essa informação, a uma arte que homenageia um grande artista, é uma forma de levar a minha arte, para formar novas gerações que conheçam Manoel de Barros, que respeitem ele, que o tratem como ele merece. Ele para mim é o melhor de todos, essa cidade deveria estar cuidando dele com muito carinho”, disse.

Foto: Reprodução redes sociais/@paulovitale

Começo

Com nome difícil, mas arte que conquista, Vitor Henrique Woitschach, o Ique, é natural de Campo Grande, e se consagrou como cartunista, escultor, ilustrador e artista plástico. Conhecido na Capital pela escultura do poeta Manoel de Barros, o artista tem seu legado nos cartuns que realizou para diversos jornais brasileiros, como Jornal do Brasil, onde trabalhou por mais de 30 anos realizando charges com temas políticos e O Dia. Além disso, ele publicou também para o diário esportivo Lance, para as revistas, Veja, Mad e Fatos. Aos 25 anos foi vencedor de dois prêmios Esso de Jornalismo, sendo inclusive o único em sua categoria a vencer o prêmio.

“Gostava muito de desenhar, conhecia o mundo do jornalismo e do cartunismo, tinha meus ídolos como Ziraldo e Jaguar, queria ser como eles. Fui para o Rio de Janeiro para ser cartunista, mas nunca abandonei o desejo de ser escultor, nem a atividade da escultura. Nas minhas charges, às vezes o assunto era tão simples, e a charge tava tão na minha cabeça, que fazer desenhos era muito rápido, então para ocupar o dia todo eu fazia uma escultura em massa de modelar, levava para o estúdio, fotografava e publicava a charge em forma de escultura, porque aquilo me fascinava muito”.

“Nesse meio tempo eu fui desenvolvendo outras atividades da minha arte como a pintura, a escultura, eu fazia esculturas só para mim, em terracota, para melhorar o meu desenho, eu estudava tridimensionalidade. A minha primeira escultura em bronze está na Bolsa de Arte do Rio de Janeiro, na Praça Central”.

Foi com o convite do então prefeito do Rio de Janeiro, César Maia, que Ique fez a escultura “O Corneteiro de Pirajá”, em 2005, concebida como um cartum tridimensional, e que faz parte da Independência do Brasil. “O ex-prefeito César Maia sempre foi um grande estudioso da política latino-americana, então ele descobriu a história do corneteiro e queira fazer uma homenagem e me escolheu. A partir dai eu fui chamado para fazer outras esculturas em bronze, e me apaixonei definitivamente pelo bronze, pela escultura”.

Da arte a notícia

Mesmo tendo trabalhado com a arte em forma de informação, Ique acredita que ela nunca foi valorizada como deveria. Ele cita que durante o período da Ditadura Militar, os cartunistas se posicionaram mais e foram fundamentais para o combate a repressão e defesa das liberdades. “O humor é isso, provoca pensamentos, ridiculariza, às vezes fere mais que uma arma. Depois que a ditadura acabou, a gente ainda tinha um bom valor, mas hoje em dia, com esse mundo muito mais da ‘dancinha’ e polarizado, a charge politica, o cartum deixou de ter importância, a arte deixou de ter importância, porque, na verdade, o artista, o cartunista, era a voz do povo dentro do jornal, só que os jornais passaram a depender muito do poder publico, e o jornalismo deixou de ser inseto, tem um lado para defender, e no que defende um lado, você não permite que o cartunista fale mal desse lado, e para não entrar em conflito, não coloca o cartunista para não atrapalhar”, alfinetou.

Tanto no jornalismo como na arte, a política foi o cerne do trabalho de Ique, que enxerga o mundo atual para o cartunismo como inexistente. “Nesse novo ciclo da direita radical, eu fui mais ameaçado, mais violentado, agredido, do que o resto da minha vida como jornalista e cartunista”, confessou o artista. Em outubro de 2021, Ique abandonou de vez o trabalho de chargista político, que realizava de forma independente desde o encerramento da versão impressa do Jornal do Brasil. Em publicação nas redes sociais na época, o artista relatou que entendeu que as charges não têm mais o mesmo impacto, nem espaço nos meios de comunicação atual, e que as redes sociais são “manipuladas pelo algoritmo que as restringem a uma bolha, amordaçando sua função jornalística primordial, as charges acabam validando um embate insólito, onde, inacreditavelmente, a vida deixou de ser prioridade, o humanismo desapareceu, o bom senso passou longe, e o negacionismo, que, alimentado por fake news, virou verdade absoluta e ideologia política”, escreveu.

O artista ainda confidenciou que a pandemia de covid-19 e o isolamento social o atingiram de forma pessoal, o que o fez repensar em seu trabalho independente com as charges. “Exausto, decidi focar na minha sobrevivência mental e emocional, priorizando a qualidade de vida, me dedicando integralmente à minha arte, na pintura, no desenho, na escultura, nos roteiros, onde tenho ainda muito a realizar. Com amor acima de tudo, quero curtir meus netos, que vieram para dar novo sentido a vida, junto com a família que me fortalece, e com os verdadeiros amigos. Gratidão aos que me acompanharam nos 44 anos de minha carreira como chargista político, da qual tanto me orgulho, e cujo ciclo, encerro aqui”, finalizou, ainda na publicação do Instagram.

Arte para quê?

O artista defende que a arte precisa começar na educação, desde o chão da escola, com crianças e adolescentes, como ferramenta para inserção de cultura, e formação da cidadania. “A arte é muito importante na formação do cidadão sadio, são, mentalmente equilibrado, porque você vai experienciar algumas coisas que outras atividades não te dão. A arte faz o mesmo papel dos esportes, que, na verdade, é a educação, o respeito, os limites, é você saber se comportar como um cidadão que vive em sociedade múltipla, ampla. Agora, quando a educação ta ruim, não tem respeito pela arte, não tem uma formação artística, não oferece para esse povo, como você quer uma sociedade sadia? Não é possível. Quem não tem cultura, não tem futuro e não tem nem presente”, finaliza

Por Carolina Rampi

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