Sobre confluências: patrimônio cultural de MS e luta contra o racismo

Foto: arquivo pessoal
Foto: arquivo pessoal

No mês em que completou 24 anos da política de patrimônio cultural imaterial no Brasil, por meio do Decreto 3.551/2000, que instituiu o “Programa Nacional do Patrimônio Imaterial”, convido as/os leitoras/es a refletir sobre conquistas e ações que articularam direitos, sujeitos, territórios e identidades. Nesse exercício, é oportuno refletir igualmente sobre como tem se efetivado as políticas públicas no campo do patrimônio, no âmbito nacional e estadual, em uma sociedade que se reconhece majoritariamente negra.
Inicio destacando que o reconhecimento dos bens relacionados à cultura negra, de matriz africana ou afro-brasileira, é um fenômeno recente. A conquista de direitos e a valorização da diversidade cultural no campo do patrimônio, assim como na educação, apresenta um contexto histórico marcado por negociações e lutas dos movimentos sociais.

O Decreto 3.551/2000 faz parte de um conjunto de marcos legais que regulamentam a garantia de direitos conquistados na Constituição Federal de 1988, buscando reparar desigualdades sociais geradas pelo racismo estrutural em uma sociedade pluriétnica. Tal decreto federal abriu caminhos para definir outros marcos legais nos estados brasileiros, à exemplo da Lei nº 3.522, de 30 de maio de 2008, que dispõe sobre a proteção ao Patrimônio Cultural de Mato Grosso do Sul.

Ao trazer as reflexões a nível estadual, é preciso considerar que Mato Grosso do Sul conta com grande número de lideranças indígenas e negras que resistem e se articulam fundamentalmente na luta por direitos aos seus territórios e preservação dos seus bens culturais. O Estado reúne 22 comunidades quilombolas reconhecidas e certificadas pela Fundação Cultural Palmares, mas muitas pessoas não conhecem ou negam a presença quilombola, bem como suas expressões culturais.

Em relação ao patrimônio cultural, a efetivação de políticas públicas de salvaguarda necessita de aprimoramento. A negligência aos patrimônios negros, sobretudo de natureza imaterial – os lugares, as festas, os conhecimentos ancestrais das benzedeiras e raizeiras, os terreiros de candomblé e umbanda – consolida uma história hegemônica, na perspectiva que Chimamanda Adichie classificou como “história única”. Cabe questionar qual patrimônio tem sido preservado no Estado e, consequentemente, qual memória tem sido invisibilizada.

Grupos detentores dos patrimônios imateriais em Mato Grosso do Sul tiveram (e ainda têm) suas identidades étnicas e histórias marcadas pelo racismo, pela desigualdade e vulnerabilidade social e econômica. Reconhecer e valorizar comunidades e manifestações culturais negras como patrimônio público é insistir em bandeiras essenciais, como a da luta contra o racismo estrutural.

Da mesma forma que o patrimônio cultural de “pedra e cal” demanda preservação e valorização, as expressões imateriais culturais negras, sobretudo seus detentores – guardiões de saberes ancestrais e narradores de histórias pouco divulgadas – precisam ser percebidos e ouvidos.

Sem dúvida, o encontro das políticas públicas nos campos do patrimônio, da cultura e da educação abre caminhos para a reparação. A reflexão sobre o significado e a potência da confluência dos saberes em diálogo com as comunidades tradicionais remete aos ensinamentos do pensador quilombola Antônio Bispo, nas suas palavras: “Somos povos de trajetórias, não somos povos de teoria. Somos da circularidade: começo, meio e começo. As nossas vidas não têm fim.”

Finalizo enfatizando que as nossas escolhas teóricas e metodológicas são políticas e a desconstrução do racismo exige reflexão, diálogo e, principalmente, ação. As Ciências Humanas podem assumir compromissos éticos e políticos com a diversidade cultural e, consequentemente, com a preservação do patrimônio, fortalecendo a luta contra o racismo e a descolonização dos saberes.

Manuela Areias é Professora da UEMS, atuando no curso de Graduação em História e Programas de Pós-Graduação (Profhistória e Profeduc). Pesquisadora PQ Fundect/CNPq. Doutora em História pela UFRJ. E-mail: [email protected]

Este artigo é resultado da parceria entre o Jornal O Estado de Mato Grosso do Sul e o FEFICH – Fórum Estadual de Filosofia e Ciências Humanas de MS.,

 

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