Violência obstétrica deixa marcas invisíveis: congresso propõe casa de parto e políticas públicas em MS

Foto: Divulgação/Defensoria Pública
Foto: Divulgação/Defensoria Pública

II Congresso pelo Parto Humanizado denuncia agressões silenciosas sofridas por gestantes e cobra resposta do poder público; carta será enviada com propostas como a criação de uma casa de parto no SUS

 

A dor de um parto violento não termina na sala de cirurgia. Muitas vezes, ela se estende por anos, em forma de traumas físicos, psicológicos e até silêncio. Essa foi a principal denúncia feita durante o II Congresso da Defensoria Pública pelo Parto Humanizado, realizado nesta quinta-feira (11), na Escola Superior da Defensoria Pública de Mato Grosso do Sul (ESDP), em Campo Grande.

Com a presença de especialistas, ativistas, profissionais da saúde e do direito, o evento expôs a urgência de combater a violência obstétrica na rede pública e particular, bem como a necessidade de tornar o parto uma experiência de cuidado, dignidade e respeito.

“De qual violência obstétrica estamos falando?”

A pergunta da médica Daphne Rattner, presidente da Rede pela Humanização do Parto e Nascimento (Rehuna), abriu a palestra que emocionou a plateia e conduziu uma reflexão profunda sobre os diferentes níveis dessa violência: interpessoal, institucional, sistêmica e estrutural.

“Ela empurrou a cabeça do bebê de volta para dentro. Eu dizia para ela parar porque a cabeça já havia coroado, e ela me disse que eram normas do hospital”, relatou Daphne ao citar um dos muitos casos que evidenciam práticas agressivas naturalizadas como cuidado médico.

“Fazer este corte nas mulheres é assumir que elas não são competentes para parir”, completou, ao denunciar o uso indiscriminado da episiotomia e da manobra de Kristeller, sem consentimento ou necessidade.

Para Daphne, a violência também está na formação dos profissionais: “A violência obstétrica é reproduzida durante o processo de ensino e aprendizagem como uma cultura de opressão das mulheres”. Ela cobra responsabilidade das instituições e defende o registro obrigatório de casos. “O Ministério da Saúde não tem esses números. A Rehuna já pediu a inclusão da categoria violência obstétrica nas plataformas oficiais.”

Subnotificação e desinformação

A defensora pública Kricilaine Oliveira Souza Oksman, coordenadora do Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres (Nudem), organizadora do evento, afirmou que a maioria das vítimas nem sabe que sofreu violência. “A grande questão é entender e identificar isso como violência”, disse.

Segundo ela, a Defensoria Pública recebe poucos casos, mas a realidade no Estado é bem mais grave. “Um dos objetivos desse Congresso é justamente dar visibilidade ao tema e munir essas mulheres de informação para que elas saibam o que é direito delas no pré-natal, no parto e no pós-parto.”

A médica Daphne Rattner reforçou esse diagnóstico e fez duras críticas à omissão do Ministério da Saúde. “O Ministério da Saúde não tem esses números”, denunciou. Ela explicou que a Rehuna já solicitou oficialmente a criação da categoria “violência obstétrica” nas plataformas de notificação de violência em saúde pública. “Sem dados, não há política pública eficaz”, alertou.

Ao final do evento, será elaborada uma nova carta de recomendações, como ocorreu em 2022, na primeira edição do Congresso. “Ela será enviada a diferentes órgãos e incluirá sugestões como a criação de uma casa de parto pelo SUS em Mato Grosso do Sul”, adiantou.

Política pública que acolhe

Representando o Executivo municipal, a vice-prefeita de Campo Grande, Camila Nascimento, defendeu a união entre diferentes setores para garantir o respeito no momento do nascimento.

“Não importa se o parto é no SUS, na rede privada ou em casa, o respeito precisa prevalecer sempre”, afirmou. “A gente precisa de vontade política, coragem e integração. O nascimento de um filho deve ser um ato de amor, não de dor.”

A subsecretária de Políticas para a Mulher, Angélica Fontanari, reforçou o impacto psicológico da violência: “Ela ocorre num momento de extrema sensibilidade. Se essa mulher já está fragilizada e ainda sofre uma agressão, as consequências podem atingir até o bebê.”

Dar nome à violência é o primeiro passo

Coordenadora da Casa da Mulher Brasileira em Campo Grande, Carla Stephanini celebrou os avanços no debate, mas alertou que o caminho é longo. “É bom que tem nome. A violência obstétrica foi nomeada. É combatendo essa violência que chegaremos ao parto humanizado.”

Ela defendeu que as decisões sobre o próprio corpo pertençam às mulheres: “É preciso garantir o direito à autonomia, à dignidade e ao respeito.”

A psicóloga Ana Paula Terena, participante do Congresso, trouxe sua vivência recente como mãe para a discussão. “Eu tive minha bebê há seis meses. Só depois de grávida é que descobri muitas coisas. Esse problema é estrutural. Junta racismo, machismo, o papel da mulher, da juventude, da sexualidade.”

“Levantar a voz e dizer: isso não”

A fisioterapeuta e doutora em saúde pública Angela Rios defendeu o fortalecimento das redes de apoio e a união entre os movimentos sociais, profissionais da saúde e do judiciário. “A gente vai ter que voltar no hospital pra falar de novo sobre direito ao acompanhante, sobre pré-natal de qualidade. Mas o esforço vale a pena. A luta continua, e continua, e continua.”

Ela também reforçou a importância de romper o silêncio dentro dos hospitais. “Mesmo que eu esteja convivendo ali no centro obstétrico, eu vou dizer não. Eu não vou deixar passar essa violência.”

Carta será enviada com propostas ao poder público

O Congresso termina com a leitura da “Carta de Campo Grande”, documento com recomendações concretas para o poder público. Entre as principais está a proposta de criação de uma casa de parto pelo SUS no Mato Grosso do Sul, além de protocolos mais claros, registro obrigatório de casos de violência e formação humanizada para profissionais da saúde.

Mais do que um encontro técnico, o evento foi uma convocação para transformar a realidade de quem gesta e pare no Estado. Como resumiu a médica Daphne Rattner, “lembrando que a gente está trazendo um serzinho humaninho para este planeta. Imagina se ela é recebida com amorosidade: ‘Você é bem-vinda’. Que coisa bonita.”

Por Suelen Morales

 

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