A comunidade indígena Guató, situada no Pantanal, sofre com os incêndios que destroem a região. A flora, fauna e outras condições oferecidas pelo bioma são afetadas, atingindo diretamente toda a subsistência que mantém a comunidade, que também preserva uma relação de proteção e cultivo com Pantanal. A situação alarmante provoca na população o processo de luto coletivo, visto que a destruição desse bioma impacta diretamente o modo de ser dessas comunidades.
Na penúltima sexta-feira (9), a tragédia aérea em Vinhedo trouxe à tona o trauma coletivo. A queda do voo rumo a Congonhas provocou a morte de 62 passageiros, afetando em grande parte a cidade de Cascavel, a qual perdeu 24 habitantes. O acidente provocou uma espécie de perda coletiva no município paranaense. Não associado somente ao falecimento de um ente querido, de acordo com especialistas, o sentimento de luto pode surgir por diversos tipos de perda, como o falecimento de um animal de estimação, ao término de uma relação ou em relação aos lugares que habitamos.
Desde 2020, a penúltima tragédia de grande proporção que impactou o Pantanal, até 2024, a pior queimada que atingiu o bioma em 26 anos, apresenta-se como um período de muita dor e insegurança à população indígena e outros povos tradicionais. “Esse fogo tem afetado muito a nossa aldeia, a nossa comunidade, o nosso povo, queimando as nossas frutas. As nossas fibras de aguapé, que fazemos os nossos artesanatos, o que usamos para fazermos nossas canoas. Então, de uma maneira geral, tem afetado tanto as matas como os rios também da nossa região”, disse o líder da comunidade indígena Negré Guató, Denir Marques da Silva, localizada às margens de São Lourenço, que banha o Pantanal a 559,4 km da Capital.
Em Mato Grosso do Sul concentra-se 192 comunidades indígenas e 24 comunidades ribeirinhas. O número pode ser maior levando em consideração que essas são somente as registradas pela Semadesc (Secretaria de Meio Ambiente, Desenvolvimento, Ciência, Tecnologia e Inovação) e Sec (Secretaria de Cidadania). Ao todo, 18 comunidades em Corumbá foram atingidas e recebem assistência contra os danos por queimadas. Mais de 626 famílias, contudo, ainda carecem de assistência em saúde e 548 precisam de contribuições com cestas básicas e alimentação, de acordo com dados da Ecoa (Ong Ecologia e Ação).
Segundo a Doutora em Arqueologia Luana Campo, que esteve em Barra de São Lourenço em visita à aldeia, é possível constatar, a partir de relatos da comunidade, que a queimada passou a compor a memória histórica desses grupos. “Quando se dirige às comunidades, e nesse caso estou falando especificamente da barra de São Lourenço, durante pouco tempo de conversa, é observável que a fala dessas pessoas são falas de muita dor, porque elas tiveram todo o seu território diretamente impactado pelas queimadas. Nós estamos falando de casas, nós estamos falando de roças, nós estamos falando de meio de uma vida que foi totalmente impactada pela queimada a ponto de ser inviabilizada”, enfatiza. Algumas pessoas abandonam as suas casas porque não têm condições de ficar após terem perdido exatamente tudo”, comenta a docente do Campus Pantanal, que destaca que a queimada, para quem não é indígena, é a perda de um bem material. “Para o indígena, o povo tradicional, em geral, ela impacta todo o modo de vida, todo o modo de ser, porque o ser indígena está muito atrelado à sua terra”.
Luto coletivo e como lidar
O luto coletivo é a jornada compartilhada de dor que uma comunidade vive quando confrontada por uma tragédia ou evento impactante, comenta a psicóloga intercultural Lethicia Soares, em entrevista ao Jornal O Estado. A profissional explica que, quando uma perda se estende para além do individual e reverbera em toda uma comunidade, grupo ou nação, é quando este tipo de luto é vivenciado.
“Para uma pessoa ou comunidade, a destruição ou mudança significativa de um local pode provocar um processo de luto devido ao forte vínculo com o ambiente. A perda de um rio, área de pesca ou floresta representa não apenas a destruição de recursos essenciais, mas também a perda de um espaço vital para a vida, cultura e tradições”, destaca. “Afetando assim o bem-estar psicológico ao remover aspectos centrais da identidade e do modo de vida do indivíduo, resultando em sentimentos de desorientação, perda e frustração frente à mudança drástica em um ambiente crucial para a existência e práticas culturais”, sublinha a psicóloga.
Expressar abertamente os sentimentos de perda é essencial para lidar com o luto coletivo nas comunidades. “As práticas tradicionais de compartilhamento e apoio mútuo desempenham um papel vital nesse processo. Participar de eventos e rituais que exaltam a importância do lugar e do modo de vida tradicional pode fortalecer a coesão e a resiliência comunitária”, salienta a profissional.
Procurar ajuda de profissionais de saúde mental e organizações não governamentais que podem fornecer suporte psicológico é outra sugestão feita pela psicóloga. “Para as populações ribeirinhas, cuja ligação com a terra e a natureza é essencial, promover iniciativas de recuperação ambiental, como projetos de conservação e reflorestamento, pode contribuir para a restauração do ecossistema e atenuar a sensação de perda”, acentua.
Por Ana Cavalcante