“Esperança morreu com Vanessa”: vítimas relatam descaso “atendimento piorou”
Mulheres que buscaram ajuda na Casa da Mulher Brasileira, em Campo Grande, denunciam falhas graves no atendimento prestado pela 1ª Deam (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher). Os relatos apontam demora, descaso, falta de orientação e, em alguns casos, recusa no registro de boletins de ocorrência e no recebimento de provas, o que aumenta a vulnerabilidade das vítimas e dificulta a proteção contra agressores.
A situação contrasta com as promessas de melhorias feitas após a morte da jornalista Vanessa Ricarte, em fevereiro deste ano, que mobilizou autoridades e gerou grande comoção social. Passados sete meses, as vítimas afirmam que pouco mudou.
Uma mulher de 40 anos, que pediu para não ser identificada, relata que o último atendimento foi o mais difícil que já enfrentou. Ela buscava registrar um boletim de ocorrência contra o ex-companheiro, que pegou a filha sem autorização, mas encontrou resistência por parte da equipe.
“Cheguei lá às 18h e fui atendida quase às 21h. Diziam que era troca de plantão, mas tinha gente desde às 16h esperando. Quando cheguei na parte da delegacia, a delegada não queria registrar o boletim. Falaram que não era caso para isso. Eu argumentei que o 190 havia me orientado a denunciar, que era violência vicária, quando o pai usa a criança para agredir a mãe. Só assim aceitaram fazer um adendo no meu boletim.”
A vítima afirma que o tratamento foi desrespeitoso e que, na sua percepção, o atendimento piorou desde o caso Vanessa Ricarte: “Ela [a delegada] fez pouco caso da minha situação. Não leu meu histórico, não entendeu por que eu estava lá e agiu como se eu quisesse fazer boletim por birra de ex-marido. O atendimento foi muito ruim, bem pior do que das outras vezes. E nas outras vezes que eu fui, a Vanessa ainda não tinha morrido.”
“Nem água, nem transporte”
A demora no atendimento se soma a problemas estruturais. Marilúcia Oliveira, 47 anos, conta que ficou da 6h às 10h na Casa da Mulher Brasileira, sem se alimentar e sem receber sequer vale-transporte para retornar para casa.
“Saí de casa antes das 5h e fui levada de camburão. Quando cheguei, ninguém orienta nada, é uma enrolação enorme. Fiquei rodando de setor em setor para tentar conseguir um vale-transporte, mas desisti. Tive que pegar dinheiro emprestado para pagar um Uber, porque eles trazem a gente, mas não levam de volta. Parece que a vítima é tratada como bandido. Nem água, nem café da manhã, nada oferecem. Fiquei quatro horas lá, com fome, preocupada com a minha mãe acamada e ainda voltei para a casa onde meu ex-companheiro me ameaçou, pois moro de aluguel na casa da avó dele. Não tenho para onde ir, estou correndo risco de vida”, relatou abalada.
Encontro com o agressor na delegacia
Outro caso, de uma mulher de 45 anos, revela falhas na gestão de segurança dentro da própria Deam. Ela foi entregar celulares hackeados como prova contra o ex-companheiro, que a persegue há quatro anos, e acabou encontrando o agressor cara a cara na unidade.
“Fui entregar os aparelhos e meu relato por escrito, mas não quiseram receber, disseram que só minha advogada poderia entregar. Perdi a medida protetiva justamente quando o agressor estava na cidade. E no mesmo dia, dentro da delegacia, dei de cara com ele. Foi um choque enorme. Descobri depois que era o dia da oitiva dele, mas ninguém me avisou. Isso desmotiva a denunciar, porque a gente vai buscar proteção e se sente ainda mais exposta.”
A advogada da vítima confirma que precisou intervir para garantir que as provas fossem anexadas ao processo. “Eles se recusaram a fazer o auto de apreensão dos celulares por pura preguiça. Esperei três horas e só resolveram quando falei com uma delegada. É um atendimento desumano”, afirma.
Polícia Civil promete melhorias
Em nota, a Polícia Civil de Mato Grosso do Sul afirmou que instaurou procedimento interno, por meio da Corregedoria-Geral, para apurar a atuação de servidores. A instituição destacou que já implantou medidas para modernizar o atendimento, como a tramitação 100% digital de boletins e medidas protetivas, a criação da Ouvidoria da Mulher, o uso de inteligência artificial e o Botão da Vida, dispositivo de emergência conectado à Guarda Civil Metropolitana.
Segundo a corporação, os atendimentos às vítimas quase dobraram entre abril e julho, passando de 70 para 138 casos mensais. A Polícia Civil reforçou compromisso com o “atendimento humanizado, que acolha e proteja a vítima”, e disse estar colaborando com as investigações conduzidas pelo MPMS (Ministério Público de Mato Grosso do Sul).
MPMS investiga falhas no atendimento da Deam em Campo Grande
O MPMS, por meio do Gacep (Grupo de Atuação Especial de Controle Externo da Atividade Policial), instaurou inquérito civil para apurar falhas estruturais e operacionais no atendimento da 1ª Deam, localizada na Casa da Mulher Brasileira, em Campo Grande.
A investigação foi motivada por denúncias de represamento de boletins de ocorrência, descumprimento de prazos, recusa na juntada de provas e mau acolhimento das vítimas.
Durante uma visita extraordinária, em fevereiro deste ano, o Gacep constatou mais de 6 mil boletins sem andamento. Após uma força-tarefa, o número foi reduzido, mas voltou a crescer: 1.366 novos registros acumulam-se sem investigação.
O inquérito busca promover melhorias no fluxo de trabalho, capacitação dos servidores e aprimoramento do atendimento às vítimas, além de garantir alinhamento às políticas públicas de prevenção à violência de gênero.
O procedimento tem prazo inicial de um ano e poderá resultar em recomendações, TACs (Termos de Ajustamento de Conduta) ou ações civis públicas.
Agosto Lilás termina com números alarmantes
Conforme noticiado anteriormente pelo O Estado, o mês de agosto, marcado pela campanha Agosto Lilás de conscientização pelo fim da violência contra a mulher, terminou com quatro feminicídios e seis tentativas registrados em Mato Grosso do Sul. No acumulado de 2025, o estado soma 24 feminicídios e 49 tentativas.
Por Suelen Morales