Crime é caracterizado quando o agressor atinge filhos e parentes para atingir mulheres emocionalmente
O Congresso Nacional está prestes a dar um passo decisivo no combate à violência de gênero. O Projeto de Lei nº 3880/2024, de autoria da deputada federal Laura Carneiro, propõe a inclusão da violência vicária como uma das formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, no artigo 7º da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006). A proposta foi aprovada pela Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher em dezembro de 2024 e aguarda análise na Comissão de Constituição e Justiça.
Segundo o texto, será considerada violência vicária qualquer forma de agressão cometida contra filhos, dependentes, parentes ou pessoas da rede de apoio da mulher com o intuito de feri-la emocional ou psicologicamente. Trata-se de um tipo de violência “por substituição”, comum em contextos de separações conflituosas, em que os filhos são usados como instrumentos de retaliação contra as mães.
Para entender melhor as implicações jurídicas e sociais da proposta, o jornal O Estado conversou com a advogada Janice Andrade, especialista em direitos das mulheres e integrante de um grupo de juristas que atua pela revogação da Lei de Alienação Parental.
“A inclusão da violência vicária na Lei Maria da Penha é importante para coibir a violência contra a mulher e proteger outras pessoas que sofrem com ela, principalmente os filhos. Representa grande avanço, pois a grande maioria dos agressores usa os filhos para perpetuar o ciclo de violência contra suas ex-companheiras e ex-esposas”, afirma.
Com a nova tipificação, explica Janice, será possível responsabilizar legalmente os agressores que continuam a exercer violência por meio dos filhos, como em casos em que se negam a pagar pensão alimentícia como forma de punição à mãe. “A inclusão na Lei Maria da Penha vai ampliar a proteção às mulheres e seus familiares, permitindo que casos de violência vicária sejam processados e julgados, e que a mulher receba o suporte jurídico e a proteção de que necessita”, completa.
A advogada defende também a revogação da Lei de Alienação Parental (Lei 12.318/10), que, segundo ela, é usada pelos agressores para manter o controle sobre as vítimas. “Os agressores usam a Lei de Alienação Parental para continuar violentando suas ex-companheiras através dos filhos, como por exemplo, matarem os filhos para se vingar das mães”.
Na prática, Janice observa que muitos genitores violentos mantêm uma imagem social de “bonzinhos”, o que os protege judicialmente: “O genitor é tratado como alheio ao agressor, permanecendo impune e mantendo sua figura de bom pai à sociedade, invisibilizando as situações em que menores de idade, que deveriam ser protegidos pelo Estado, sofrem os reflexos da violência doméstica”.
Ela também critica a forma como o sistema de justiça trata essas mulheres: “As instituições revitimizam essas mulheres e crianças, quando colocam as mães sob suspeita ou adotam uma posição favorável, por padrão, à figura do agressor bom pai”.
Em Mato Grosso do Sul, os dados são alarmantes: entre 2015 e 2025, foram registrados 159 feminicídios. Somente em 2024, 31 mulheres foram assassinadas e outras 78 sofreram tentativas de feminicídio. A violência doméstica também é expressiva, com cerca de 20 mil ocorrências registradas no ano passado.
Janice relata que casos de violência vicária já são recorrentes em seu escritório: “Várias mulheres denunciam as violências e conseguem medida protetiva, mas o agressor continua agredindo através dos filhos. Em dois casos, os agressores se recusaram a pagar pensão como forma de atingir as mães. Um deles, médico com renda de R$ 50 mil, ofereceu um salário mínimo; outro, um empresário, está sem pagar desde novembro de 2024”.
Questionada sobre como as mulheres podem reconhecer esse tipo de violência, Janice é clara: “Devem acionar a rede de proteção e denunciar os agressores. Exigir acompanhamento psicológico pela rede. O Estado tem o dever de garantir que essas crianças cresçam de maneira saudável e equilibrada”.
Para ela, o judiciário precisa aplicar, com prioridade, o princípio do melhor interesse da criança. “O poder público precisa parar de normalizar as violências contra mulheres e crianças, como se o direito à integridade física e mental fosse menor que o direito de convivência com o genitor agressor”.
Por fim, Janice deixa uma mensagem às mães que enfrentam esse tipo de situação: “Gostaria de abraçar cada uma delas e dizer que elas têm o meu apoio e solidariedade. Apesar de o sistema judiciário ser uma máquina de moer mulheres e crianças, nós resistiremos para que nossos filhos vivam em paz, em um lar sem violência”.
Por Suelen Morales
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