Pesquisadores indicam que dragagem poderá reduzir as áreas alagadas afetando os ecossistemas
Discussão sobre a concessão à iniciativa privada da hidrovia do rio Paraguai, projeto que tramita no Ministério de Portos e Aeroportos e, prevê obras de dragagem para aumentar a navegabilidade de cursos d’água, tem sido repercutido entre ribeirinhos e pesquisadores, que desaprovam o projeto. Grupo de estudiosos publicou artigo analisando possíveis efeitos sobre o bioma.
Durante audiência pública, desta quinta-feira (6), as autoridades debateram sobre o projeto, analisando os possíveis impactos e reforçando o aumento da competitividade internacional da economia, tendo o apoio dos países vizinhos, como o Paraguai e a Bolívia. Vale lembrar que, até o final de fevereiro, o projeto está em consulta pública, ou seja, todos os brasileiros podem participar de uma consulta virtual para opinar sobre a questão.
O artigo contou com 42 pesquisadores de diversos países, incluindo docente da Unesp (Universidade Estadual Paulista), que analisaram os impactos ambientais das obras de dragagem previstas no projeto, que podem incluir redução da duração da estação de alagamento, diminuição de área alagada e degradação da excepcional diversidade biológica da região.
Os cientistas do Brasil, Alemanha, Reino Unido e Estados Unidos publicaram o texto na revista Science of the Total Environment. Logo em seu extenso título os autores fazem o alerta. Na tradução para o português, lê-se: “O fim de todo um bioma? O Pantanal, a mais vasta terra alagável do mundo, está sendo ameaçada por um projeto de hidrovia cuja capacidade para suportar tráfego em larga escala de maneira sustentável é incerta”.
No artigo, os autores reforçam que a dragagem contínua, necessária devido aos sedimentos arenosos do rio, será um grande problema. Os trechos que exigem maior intervenção coincidem com áreas de alto valor ecológico, como Parques Nacionais, Patrimônios Mundiais da Unesco, Reservas da Biosfera, reservas indígenas e sítios de tipo Ramsar, uma categoria que identifica áreas úmidas protegidas por serem consideradas importantes para todo o planeta.
“A dragagem constante não apenas será cara como também reduzirá as áreas alagáveis, afetando os ecossistemas. Além disso, o destino dos sedimentos dragados – a planície de inundação – causará danos ambientais significativos”, alertam os pesquisadores no texto do artigo.
A proposta de concessão à iniciativa privada de uma nova hidrovia a ser criada, que estará inserida nas bacias dos rios Cuiabá, Paraguai, Taquari, Negro e Miranda
e se chamará hidrovia do rio Paraguai. Trata-se de um projeto pioneiro, que está sendo desenvolvido pelo Ministério de Portos e Aeroportos.
Do ponto de vista da navegação, o rio Paraguai possui duas partes com características distintas. No chamado tramo sul, que se estende da foz do rio Apa até Corumbá (MS), o rio é navegável por grandes comboios comerciais. Já o tramo norte, que fica entre Corumbá e Cáceres (MT), apresenta ilhas fluviais, assoreamentos e excesso de sinuosidade, o que limita sua navegação a pequenas e médias embarcações.
No centro do problema está a discussão sobre o calado das embarcações, isto é, o volume do casco que fica abaixo da água, até a quilha. As obras demandadas pelo projeto da concessão se destinam a adaptar o volume de água dos rios para que possam ser navegados. Isso vai exigir que os rios sejam dragados, para que se tornem mais fundos. Esses sedimentos serão depositados na planície alagável, e isso pode afetar a singular dinâmica de períodos secos e alagados do pantanal.
Pierre Girard, doutor em hidrologia pela Université du Québec, no Canadá, e professor da UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso), diz que a dragagem prevista no projeto funcionará como um autêntico dreno, acelerando o escoamento da água, contribuindo para a seca no Pantanal e ampliando os riscos de incêndios e danos à vegetação.
“O rio Paraguai apresenta trechos com curvas fechadas e calado reduzido, especialmente no chamado tramo norte do projeto, o que dificulta a navegação e exige adaptações das embarcações”, explica. “A diminuição do nível de água, agravada por secas severas, compromete a navegabilidade e a funcionalidade do canal”, diz Girard.
A fase inicial do projeto da hidrovia se situa no tramo sul, abrangendo um trecho do rio com 600 km de extensão entre Corumbá e a região da foz do rio Apa, que fica no município de Pedro Murtinho (MS), cidade considerada como uma espécie de portal do Pantanal, e que faz fronteira com o Paraguai. O projeto prevê que a empresa que arrematar a concessão deverá investir estimados R$ 63 milhões em obras para assegurar a navegabilidade da hidrovia mesmo nos meses de seca. Esse é o ponto onde reside a preocupação dos pesquisadores.
Impactos das mudanças climáticas
Sob os efeitos das mudanças climáticas, esses processos podem se tornar ainda mais catastróficos em um bioma que atua como uma “caixa d’água” para parte da América do Sul. “Essas alterações ecológicas também podem afetar o turismo sustentável, um setor econômico relevante na região”, ressalta Girard. Para ele, a questão não é ser contra ou a favor do projeto, mas assegurar que os cuidados técnicos e ambientais sejam rigorosamente considerados durante o planejamento e a execução da obra.
“A viabilidade econômica e o custo-benefício precisam ser avaliados com critério, especialmente porque envolvem recursos públicos”, argumenta o pesquisador. Ele alerta que modelagens científicas indicam que a navegação durante os 12 meses do ano é inviável devido à variação climática. “Na época de seca, que pode durar meses, as embarcações não conseguirão navegar”, destaca o hidrólogo.
Com as mudanças climáticas aceleradas, os períodos de estiagem devem se tornar ainda mais frequentes. Entre 2019 e 2021, por exemplo, mesmo os trechos já dragados entre Corumbá e Assunção ficaram intransitáveis por longos períodos, mostrando que a questão climática já se faz presente. “Apesar de grandes investimentos, o sucesso do projeto é incerto, enquanto os impactos ambientais, culturais e sociais são significativos. Alternativas como ferrovias seriam menos prejudiciais”, sugerem os cientistas no texto do artigo.
Uma das referências em estudos sobre o Pantanal é o geólogo Mário Luis Assine, que também é um dos autores do artigo, e atua atualmente como professor voluntário no Programa de Pós-graduação em Geociências e Meio Ambiente do IGCE (Instituto de Geologia e Ciências Exatas). Para o geólogo há pontos positivos que merecem ser destacados.
“O projeto não prevê explosões de maciços rochosos em pontos críticos nem retificação de meandros para encurtar o canal. Contudo, alterações podem ser incluídas durante a execução, o que preocupa”.
As análises dos cientistas mostram que os riscos não se limitam à questão hidrológica. As alterações previstas para o bioma terão consequências integrais importantes sobre uma das maiores áreas úmidas do planeta, que constitui um bioma único. As alterações no canal do rio tendem a desconectar o leito do rio da sua planície de inundação, reduzindo o período de alagamento e diminuindo a área alagada, resultando em uma grave degradação da excepcional diversidade biológica e cultural do Pantanal, avaliam os pesquisadores.
Ribeirinhos fora do debate
Durante a audiência, o Evtea (Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental) apontou os impactos que serão causados para as comunidades ribeirinhas, porém não teve a presença de representantes dessas populações, contrariando a Convenção 169 da OTI (Organização Internacional do Trabalho). A convenção estabelece que essas comunidades têm o direito de participar das tomadas de decisão sobre empreendimentos que impactam seus territórios.
“As populações ribeirinhas não são apenas um tópico, um parágrafo que deve ser colocado no estudo. Eles são detentores de direitos, reconhecidos pelo Estado brasileiro, reconhecidos pelo STF (Supremo Tribunal Federal) e que devem ser consultados de forma livre, prévia, com boa fé e isso não foi feito”, questionou Marco Antonio Delfino de Almeida, procurador da República no Mato Grosso do Sul, que participou da audiência.
De acordo com o estudo de impactos, a hidrovia pode afetar a rotina dos ribeirinhos que vivem às margens do rio Paraguai. “As intervenções previstas podem causar impactos no fluxo de transportes e outras atividades exercidas nessas comunidades. Além disso, alterações na qualidade da água podem prejudicar a saúde dos ribeirinhos”, informa um trecho do documento.
Em outro ponto, o estudo considera que “aumento do tráfego de embarcações e máquinas pesadas associado à execução das obras de derrocamento pode resultar em poluição sonora e do ar, perturbando a tranquilidade das comunidades e, em casos extremos, afetando a saúde respiratória dos habitantes”.
Além dos ribeirinhos, as comunidades indígenas da região também estão sujeitas aos impactos. Segundo o estudo, “as alterações no leito do rio podem afetar práticas culturais relacionadas à pesca ou ao uso do espaço fluvial fora das terras indígenas”.
A hidrovia servirá, principalmente, para o transporte de minério de ferro brasileiro que, de acordo com a projeção da Antaq (Agência Nacional de Transportes Aquaviários). Como impacto positivo, o estudo cita a melhoria no transporte dos produtos cultivados pelas comunidades tradicionais. “(…) observa-se também impactos positivos, como o aumento da segurança na navegação, possibilitando o transporte fluvial noturno, facilitando o escoamento da produção agrícola das comunidades ribeirinhas”, destaca o documento.
Por Inez Nazira
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