A interrupção da Feira Mixturô, no último sábado (13), na Praça do Peixe, no Bairro Vilas Boas, reacendeu um debate antigo em Campo Grande sobre o futuro dos eventos culturais em espaços públicos. Feirantes, expositores e produtores culturais temem que ações pontuais, motivadas por denúncias individuais, estejam contribuindo para o enfraquecimento de iniciativas que promovem lazer, cultura e geração de renda em uma cidade que já possui poucas opções desse tipo e que, com frequência, vê eventos serem interrompidos ou encerrados.
Realizada há mais de três anos, sempre no segundo sábado de cada mês, a Feira Mixturô reúne expositores de artesanato, gastronomia, empreendedorismo e atrações culturais, com público predominantemente familiar. O evento ocorre das 17h às 22h, na Avenida Bom Pastor, e, segundo a organização, utiliza som ao vivo no formato voz e violão, além de som mecânico em volume considerado baixo.
Na noite do último sábado (13), por volta das 20h30, a feira teve as atividades interrompidas após a Polícia Militar Ambiental ir ao local para apurar denúncia de perturbação sonora feita por um morador da região. Inicialmente, houve orientação para desligamento do som, o que foi feito sem resistência. No entanto, a situação se agravou quando também houve reclamação sobre o barulho do gerador de energia, utilizado para manter o funcionamento das barracas.
Vídeos divulgados nas redes sociais pela organizadora da feira, Carina Zamboni, mostram o momento em que o gerador é desligado, deixando expositores sem condições de trabalho. “Fizeram a gente desligar o gerador e acabar com a energia da feira inteira. São famílias trabalhando. Muitas barracas precisam de energia para funcionar”, disse em uma das gravações.
A organizadora explicou que o desligamento do gerador ocorreu para a aferição dos decibéis, mas que a feira permaneceu sem energia por um longo período. “Tivemos que desligar o gerador para fazer a aferição dos decibéis. A feira ficou sem energia por muito tempo, prejudicando todos. Quando foi liberado, já era tarde, na prática a feira tinha acabado”, afirmou.
Ela também relatou que o gerador já havia sido mudado de local no início da montagem do evento, após o mesmo morador reclamar do equipamento estacionado em frente à residência dele. “Mesmo mudando, não adiantou. Ele já tinha preparado um ofício, que o policial nos mostrou, com imagens de outras edições da feira retiradas das nossas redes sociais e até o banner de divulgação”, contou.
Segundo a organizadora, a denúncia não atingiu apenas a feira. “Não foi só com a gente. Outros bares da Bom Pastor, inclusive o da esquina, também tiveram o som interrompido. Ele sempre implica e chama a feira de baderna. É uma pessoa conhecida por causar esse tipo de problema no comércio da região”, relatou.
A feira estava dentro do horário permitido quando a energia foi cortada. O evento voltou a ocorrer no domingo (14), mas sob receio de novas intervenções. “A polícia disse que vai voltar para fiscalizar e, se tiver som, pode acontecer tudo de novo. Estamos usando um espaço público de forma saudável, promovendo cultura, lazer e economia. São famílias trabalhando e outras passeando”, concluiu a organizadora.
Moradores defendem a feira e criticam denúncia
Moradora do Bairro Vilas Boas, a jornalista Zana Zaidan afirmou que a denúncia não reflete a opinião da maioria dos moradores da região. “É um grande absurdo. A feira existe há anos, sempre foi muito bem organizada e a praça ficava limpíssima ao final. O mais interessante é que há quase uma unanimidade entre os moradores de que é muito melhor o espaço ser ocupado por eventos culturais do que permanecer abandonado e sujeito a outros problemas. Fiquei surpresa, até porque a maioria dos moradores do entorno é composta por pessoas mais idosas, e ainda assim muitos acreditam que a denúncia tenha partido de algum morador novo”, relatou.
Outra moradora, que preferiu não se identificar, disse que nunca houve problemas semelhantes no passado. “Moro aqui há muito tempo e isso nunca aconteceu. No início, a Lenilde organizava eventos e trazia shows, eu mesma assisti diversas apresentações do Grupo Acaba. Acredito que essa pessoa tenha se mudado recentemente, porque já frequentei várias feiras no local e nunca houve nada que atrapalhasse quem mora ali”, afirmou.
Ela também destacou que quem reside em frente a uma praça precisa compreender a função social do espaço. “Quem compra um imóvel em frente a uma praça precisa ter consciência de que se trata de um bem público, onde eventos podem acontecer. Fiquei revoltada, isso demonstra uma postura muito pequena. É alguém que não gosta de ver desenvolvimento. Deveria, inclusive, considerar que não se trata de um evento com som excessivo, como acontece em grandes centros, onde ruas são fechadas e o volume é muito mais alto. Essa atitude acaba prejudicando comerciantes da Bom Pastor e as pessoas que frequentam a praça”, disse.
A moradora Carol, frequentadora da feira, também criticou a denúncia. “Sou frequentadora assídua e já levei amigos para conhecer a feira. Não concordo com a denúncia. A feira não gera poluição sonora significativa e não houve motivo para esse tipo de reclamação. Ela acontece apenas uma vez por mês, com horário definido para começar e terminar. É um ambiente agradável, familiar e diferenciado. Quando chega o dia da feira, costumamos avisar nos grupos de vizinhos para que todos participem. Nunca tivemos problemas. Fiquei realmente chocada com o ocorrido”, relatou.
Produtores culturais alertam para retrocesso
Para a produtora cultural Luana Peralta, idealizadora da feira Ziriguidum e da Feirinha do Laricas Itinerante, o episódio reflete um cenário mais amplo de pressão sobre eventos culturais em Campo Grande. “Não sei exatamente o que aconteceu no caso específico, mas é possível observar claramente o aumento das ações policiais contra movimentos culturais. São iniciativas que geram empregos, movimentam a economia da cidade, garantem sustento para famílias e contribuem para a dinâmica urbana como um todo”, afirmou.
Segundo ela, há um desequilíbrio na forma como essas situações são tratadas. “Uma reclamação individual acaba tendo um peso desproporcional, enquanto há muitas outras pessoas envolvidas e beneficiadas por essa movimentação, que é tão importante para o crescimento da cidade. Os fazedores de cultura raramente são ouvidos e não contam com o respaldo necessário para realizar seus eventos, e isso precisa mudar”, pontuou.
Luana defende a criação de políticas públicas específicas para o setor. “Espero que as autoridades passem a pensar em políticas públicas voltadas para eventos culturais e feiras, que estão em alta, para que essas iniciativas ocorram com segurança e apoio. É preciso reconhecer a importância de quem se dispõe a movimentar a cidade, uma capital que tem enfrentado retrocessos nesse campo diante da ausência de apoio do poder público”, concluiu.
O morador da região Reginaldo Ramos também avaliou que a interrupção da feira levanta um debate necessário sobre o uso dos espaços públicos. “A interrupção da feira a partir de uma denúncia individual levanta a discussão sobre o equilíbrio entre o direito individual e o interesse coletivo. Não concordo com a posição do morador que fez a denúncia, pois as feiras vão além do comércio. Elas promovem cultura, lazer, convivência social e fortalecem a economia local”, afirmou.
Para ele, embora reclamações sejam legítimas, elas não deveriam se sobrepor ao interesse coletivo. “Uma denúncia isolada não deveria se sobrepor ao uso coletivo do espaço público, especialmente quando a atividade é regular e beneficia a comunidade. O ponto central é a necessidade de diálogo e mediação, valorizando a cultura, o lazer e a vida comunitária acima de interesses individuais”, concluiu.
Até o fechamento desta reportagem, a Polícia Militar não havia se manifestado oficialmente sobre a ocorrência.
Por Suelen Morales