Corda guiou ao poço e abriu caminho para o progresso que vai por debaixo da terra

Foto: Marcos Maluf
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Descendentes de mulher alforriada celebram conquista histórica com a chegada de água e esgoto na Comunidade Tia Eva

Neta da fundadora da Comunidade Tia Eva, Neuza Jerônimo Rosa dos Santos, 75 anos, orgulha-se de mostrar no quintal o que ela considera ser duas relíquias. A primeira é um poço tamponado, enfeitado com potes de plantas naturais, com profundidade superior a 25 metros. A segunda é uma torneira que fornece água tratada, utilizada por ela no dia a dia na limpeza e para irrigar o jardim que cultiva. Por trás dessas lembranças vibrantes, há um rico acervo de histórias, impregnadas de uma busca por resgate histórico-cultural que atravessa gerações, sempre carregadas de um apelo por mais garantias de direitos.

Neuza reside na Rua Ciro Nantes da Silveira, localizada na Comunidade Remanescente de Quilombo São Benedito, mais conhecida em Campo Grande como Comunidade Tia Eva. Com voz animada e apressada, ela revive relatos de oralidade dos mais antigos que escuta desde criança sobre a origem da comunidade e a chegada do progresso.

No passado, a água era retirada do poço apenas com um balde amarrado a uma corda. Depois, instalaram um sarilho, mas ele era perigoso, principalmente para as crianças, e foi removido. O mecanismo manual foi substituído por uma bomba d’água, que funcionou por muitos anos. “Quando a água encanada chegou até nós, o poço foi fechado. Hoje temos água tratada na torneira, e isso representa um avanço. Este ano, a rede de esgoto foi instalada, e eu já fiz a ligação. Para mim, isso é um grande progresso”, diz, com riso.

Foto: Marcos Maluf

Neuza é uma daquelas personalidades de bairro que adoram contar histórias do passado, mas quando se trata de água e esgoto na Comunidade Tia Eva, ela se destaca como uma verdadeira vanguardista. “A água desse poço serviu a muita gente, mas precisava ser fervida para poder tomar. Agora, recebemos uma água de boa qualidade diretamente na torneira. Imagine só, eu, que tenho problemas renais, dependendo daquela água de poço sem tratamento. Eu nem era nascida quando ele foi aberto, mas precisamos ter uma visão de melhoria; caso contrário, as coisas não evoluem e ficamos para trás na vida”, afirma.

Bisneto da matriarca da comunidade, Sérgio Antônio da Silva, mais conhecido como Seo Michel, recorda que, após muito tempo dependendo diretamente do Córrego Segredo, a água de um poço artesiano foi cedida pelos seminaristas, com autorização do bispo Dom Antônio Barbosa. Somente depois é que o abastecimento veio pelo sistema que conhecemos hoje. “Eu vi a água encanada chegar aqui, e isso foi um marco para nós”, relembra.

Herança da fé

Corda guiou ao poço e abriu caminho para o progresso que vai por debaixo da terra – Foto: Marcos Maluf

O prazer de abrir uma torneira com água potável a qualquer momento ou de dar descarga em um vaso sanitário, sabendo que os dejetos serão levados sem esforço humano para trata mento, era algo praticamente inimaginável em 1905 para a Comunidade Tia Eva. O início foi árduo para aqueles que acabavam de deixar a condição de escravizados e traziam, em um carro de boi, algumas tralhas e três filhas pequenas: Joana, Sebastiana e Lazara. Esse sonho, que levou três meses de uma penosa viagem, tinha como guia uma mulher de aproximadamente 50 anos: Eva Maria de Jesus, a Tia Eva.

Conforme as histórias contadas pelos griôs, Eva havia feito uma promessa de comprar terras caso conseguisse se libertar das cordas da escravidão. Ela se dedicaria a fazer o bem ao próximo e se tornaria uma fiel devota de São Benedito, celebrando festas anuais, mesmo em condições precárias, numa comunidade que pretendia fundar. Assim, ao deixar Mineiros, em Goiás, e se estabelecer nas proximidades do Córrego Segredo, começou a cumprir seu voto de fé, adquirindo um pedaço de terra por 85 mil réis, onde também acolheu uma família que viera com ela de Mineiros.

Na época em que Eva Maria chegou a Campos de Vacaria, hoje o município de Campo Grande, a atividade pecuária predominava na região. Havia quase nenhuma infraestrutura, mas muitas comitivas de gado passavam pela que é atualmente a via principal da comunidade (Rua Eva Maria de Jesus). O poeirão dominava a paisagem, e quando chovia, o barro se espalhava. Mesmo assim, a vida era muito melhor do que a condição de escravizada que havia deixado para trás. Entretanto, mesmo alforriados, a dignidade ainda estava distante.

As dificuldades enfrentadas por aqueles que se juntaram à fundadora Tia Eva eram diversas, desde a falta de estradas até o acesso à água. Saneamento básico era inexistente. A água era retirada do Córrego Segredo, coada em um pano e fervida antes de ser consumida. As roupas eram lavadas às margens do rio, usando tábuas. Por muito tempo, o banheiro era a céu aberto, no mato.

Problemas climáticos, como inundações e secas prolongadas, têm sido parte do cotidiano de comunidades ao redor do mundo por séculos. Contudo, esses fenômenos têm ganhado maior visibilidade, especialmente em regiões antes não afetadas ou em áreas social e economicamente mais desenvolvidas, o que torna a situação mais alarmante para as autoridades.

Em contrapartida, os pequenos mundos sem acesso à água potável e ao saneamento básico – considerados direitos humanos essenciais, fundamentais e universais, indispensáveis para uma vida digna, conforme preconizado pela ONU (Organização das Nações Unidas) – ainda aguardam apoio ou começam a dar os primeiros passos em direção a esses serviços básicos. Para se ter uma ideia, no início da Comunidade Tia Eva, a ONU ainda não existia como referência mundial; seu surgimento ocorreu em 24 de outubro de 1945, substituindo a Liga das Nações após o término da Segunda Guerra Mundial.

Reparação histórica é pedido que começa a ser atendido

Nascida e residente da comunidade, Vania Lucia Baptista Duarte, 48, é da quinta geração de Tia Eva e atualmente ocupa o cargo de subsecretária estadual para Promoção da Igualdade Racial. Ela ressalta que, mesmo com a perfuração de poços em algumas casas antes da chegada da água encanada, o Córrego Segredo foi utilizado por muitos anos para lavar roupas e tomar banho, especialmente durante a seca, quando a água escasseava.

Antes das benfeitorias chegarem, a própria comunidade mobilizou-se em busca de melhorias, com destaque para a diretoria da Associação dos Descendentes de Tia Eva e o Movimento Negro. Em relação à implantação da rede de esgoto, Vania enfatiza os benefícios diretos para a saúde e para o uso do quintal. “Havia residências com duas ou três fossas que funcionavam de maneira inadequada. O fechamento delas possibilitou até a ampliação das casas e a redução da presença de insetos. Também surgiram benefícios educativos”, destaca.

Uma dignidade que deveria ser de todo cidadão brasileiro chegou tarde para Tia Eva. Esse é o sentimento de Vania em relação à dívida que o Brasil tem com a população negra. “Por muitos anos, os mapas sequer registravam a existência da comunidade; a chegada da energia e da telefonia foi atrasada. Vania fala sobre a necessidade de reparação histórica. “Quando a Lei Áurea foi assinada em 1888, uma lei tão breve que libertou os negros da condição de escravizados, nos deixou à própria sorte. Se não existirem políticas públicas focais, como poderemos acessar saúde, educação, água e esgoto?”, questiona Vania, que possui formação em História e Pedagogia.

De acordo com a Águas Guariroba, concessionária responsável pelos serviços de água e esgoto em Campo Grande, foram instalados 6 km de rede de esgoto na Comunidade Tia Eva, com a conclusão desse serviço ocorrendo em julho de 2024. Neste projeto, foram realizadas 462 ligações entre as residências e a rede coletora, melhorando significativamente o saneamento local.

Foto: Marcos Maluf

A engenheira química que atua na Águas Guariroba, Isadora Andrade, explica que em paralelo à instalação da rede de esgoto na Comunidade Tia Eva, foi levado o projeto da concessionária Escolas Saneadas, para a escola Estadual Delfino Pereira. O projeto consiste em garantir o acesso aos serviços de água e esgoto tratado em escolas municipais e estaduais, beneficiando aproximadamente 50 mil alunos em Campo Grande.

“Enquanto a rede de esgoto chegava para comunidade, nós trabalhamos a escola no sentido educacional do quanto a rede impactaria positivamente na vida deles na área da saúde, sobre a valorização dos imóveis e mais qualidade de vida. Tudo foi no sentido informativo”, explica Isadora, que é a coordenadora do Escolas Saneadas.

Além do impacto educacional, com alunos e funcionários da escola atuando como replicadores da ideia na comunidade, a Águas Guariroba tamponou as fossas que estavam localizadas no pátio da unidade escolar, proporcionando mais espaço utilizável para os alunos. A instalação da rede coletora em frente à escola trouxe uma melhoria significativa para a região.

O supervisor de disseminação de informações do Censo 2022 realizado pelo IBGE, Fernando Gallina, ressalta que as melhorias no saneamento básico têm um efeito direto na saúde da comunidade. Ele observou que, à medida que os investimentos em infraestrutura aumentam, a saúde tende a melhorar. “Quanto mais cresce o investimento em saneamento, menos doenças existem”, esclareceu.

Gerações se cruzam, e o orgulho da evolução é nítido – Foto: Marcos Maluf

Além da Comunidade Tia Eva, Campo Grande conta com outras duas comunidades remanescentes de quilombo: a Chácara Buriti, que tem 86 anos e recebeu certificação da Fundação Palmares em 2005, abrangendo 43 hectares. Em 2017, a Águas Guariroba iniciou a cloração de um poço na comunidade um sistema de tratamento local sem qualquer cobrança pelo serviço. A outra, a São João Batista, recebe atendimento com redes de água e esgoto desde 2008.

Por Dayane Mendonça

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