A leitura, em muitos contextos, representa mais do que uma atividade intelectual; em espaços de privação de liberdade, por exemplo, torna-se um instrumento de reconstrução da dignidade. É com esse princípio que o projeto “Asas da Leitura: Práticas Literárias como Processo de Socialização, Cultura e Exercício da Cidadania”, desenvolvido desde 2019 no Estabelecimento Penal Masculino de Coxim/MS, tem promovido ações literárias junto a homens em situação de encarceramento. A partir de 2024, o projeto é fruto da parceria entre o IFMS e a UFMS, ambas do câmpus Coxim.
Inspirado na Lei nº 12.433/2011, que prevê a remição da pena por meio do estudo, o projeto vai além do benefício legal. Ele articula leitura, escrita e reflexão como caminhos para a reinserção social. Segundo dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN), em 2019 cerca de 52 mil indivíduos participaram de projetos de remição de pena pela leitura no Brasil – mais de 7% da população carcerária, um número expressivo em termos de políticas de ressocialização. Em Mato Grosso do Sul, a Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário (AGEPEN) registrou, em janeiro, 455 participantes de projetos dessa natureza, o que representa 3% dos custodiados em regime fechado.
Diante do quadro alarmante do sistema prisional brasileiro – marcado pela superlotação, violência e violações de direitos, com jovens negros e pobres como maioria –, projetos como este ganham contornos de urgência social. As iniciativas literárias em prisões emergem como uma prática educativa fundamental, visando o resgate da humanidade e a abertura para novas trajetórias de vida para os indivíduos privados de liberdade.
Por meio de rodas de conversa, produção de resenhas e leitura de autores diversos — de Dostoiévski a Clarice Lispector, de Machado de Assis a Mia Couto — os participantes acessam o universo literário e são convidados a reinterpretar suas vivências e o mundo que os cerca. Nesse processo, a leitura mediada se configura como um potente instrumento de reflexão crítica e de autoconhecimento.
Mais que uma ação educativa, projetos de leitura em prisões configuram-se como políticas públicas em ação, intrinsecamente alinhadas aos princípios constitucionais do direito à educação e às diretrizes nacionais para a educação nesses espaços. Representam o compromisso ético-político de educadores que, ecoando o pensamento de Paulo Freire, acreditam na potência da palavra como força motriz para a transformação social e a (re)construção de identidades.
Os resultados são significativos: alfabetização, retomada dos estudos e mudanças de perspectiva. Segundo relatos, a iniciativa contribui de diversas formas. Um dos participantes afirma: “Eu acho que este projeto é muito bom e abre as portas para trabalhar novamente”. Já outro participante assegura: “Este projeto nos estimula, nós que somos detentos, a ter uma visão ampla e a melhorar nossa convivência tanto aqui, como também a pensar no que vamos fazer quando ganharmos nossa liberdade”. As falas dos participantes demonstram que a iniciativa vai além do letramento funcional, promovendo conscientização e uma possibilidade de ressignificação da vida.
Investir em projetos de leitura nos presídios é, portanto, uma aposta na reconstrução de vidas e, por extensão, em um futuro com menores índices de reincidência, impactando positivamente na construção de uma cultura de paz.
Gesilane de O. Maciel José é Pedagoga, mestre e doutora em Educação e Docente do IFMS. E-mail: [email protected]
Este artigo é resultado da parceria entre o Jornal O Estado de Mato Grosso do Sul e o FEFICH – Fórum Estadual de Filosofia e Ciências Humanas de MS.
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