Fenomenologia: o desafio filosófico de desnaturalizar os preconceitos cotidianos

Foto: arquivo pessoal
Foto: arquivo pessoal

Vivemos cercados de certezas. Cotidianamente, julgamos o mundo, as pessoas e suas escolhas com base em ideias prontas, “naturalizadas”, que muitas vezes sequer percebemos. Mas e se pudéssemos suspender esse modo automático de ver as coisas? E se fosse possível pensar os fenômenos do mundo antes de qualquer interpretação? E se pudéssemos investigar a origem dos nossos próprios preconceitos, ao invés de simplesmente repeti-los? Essa é a proposta da “fenomenologia”, uma corrente filosófica que nos convida a interrogar aquilo que tomamos como óbvio.

Fundada no início do século XX, em um momento de crise em que a filosofia havia perdido prestígio diante do avanço das ciências positivas e da crescente especialização do saber, a fenomenologia, criada pelo filósofo alemão Edmund Husserl, não buscava respostas prontas nem teorias grandiosas sobre o universo. Ela propunha algo aparentemente simples, mas profundamente revolucionário: um retorno às coisas mesmas. A célebre expressão husserliana “Zu den Sachen selbst!” exprimia esse movimento radical de volta à experiência originária, ou seja, à forma como os fenômenos se apresentam diretamente à consciência. Com isso, a fenomenologia buscou reabilitar o papel da filosofia como um saber rigoroso, capaz de fundamentar criticamente todas as formas de conhecimento.

A fenomenologia nos lembra que nenhuma percepção é neutra: tudo o que vemos, sentimos e julgamos está atravessado por interpretações e sentidos prévios. Em vez de tomá-los como verdades absolutas, a fenomenologia propõe que os coloquemos entre parênteses, um gesto que Husserl denominou como “redução fenomenológica” (epoché). Trata-se de suspender nossos juízos habituais para examinar a experiência tal como ela é vivida, antes de qualquer teoria ou crença.

O filósofo dinamarquês Dan Zahavi, um dos principais intérpretes contemporâneos de Husserl, afirma que a fenomenologia representa uma verdadeira “virada copernicana” no pensamento: afinal, ela desloca o foco da realidade objetiva para a experiência subjetiva como condição de possibilidade de qualquer conhecimento. O mundo objetivo, tal como o conhecemos, não é um dado bruto: é sempre constituído por uma consciência que o vivencia.

Tomemos, por exemplo, o fenômeno da família. Em vez de presumir que essa palavra designa algo fixo ou universal, a fenomenologia investiga como ela aparece na experiência concreta. Para algumas pessoas e em determinadas culturas, um cachorro, um rio ou uma floresta podem ser tão integrantes da família quanto um parente humano. O sentido de “família”, portanto, não reside apenas nos vínculos biológicos ou legais, mas na forma como esses laços são vividos, investidos de afeto, cuidado e presença. A fenomenologia opera nesse nível: no modo como os sentidos se formam a partir da experiência, antes de qualquer definição normativa.

Nesse sentido, a fenomenologia segue sendo uma poderosa ferramenta crítica. Ela nos desafia a olhar para nossos valores, crenças e julgamentos com atenção renovada, como quem abre os olhos para ver, de fato, aquilo que está diante de si. No mundo atual, marcado por discursos prontos e intolerâncias disfarçadas de bom senso, esse método filosófico tem muito a nos ensinar. Desnaturalizar o cotidiano não é negar a realidade, mas tornar-se mais consciente de como a construímos a cada instante. Ao nos convidar a investigar como os sentidos emergem, a fenomenologia nos oferece um caminho de liberdade – e talvez também de reconciliação com aquilo que realmente importa: a experiência vivida com responsabilidade e abertura.

Nathalia Claro Moreira é doutora em Filosofia pela UERJ e em História pela UFGD. Professora de História na SEMED/CG. E-mail: [email protected].

 

Confira as redes sociais do Estado Online no Facebook Instagram

 

Leia mais

Bebês Reborn: como lidar com isso?

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *