Entre perguntas e algoritmos: ciências humanas, tecnologia e inovação

Nágila Seidenstucker - Foto: divulgação
Nágila Seidenstucker - Foto: divulgação

Dificilmente passa despercebido. Sempre que digo, em uma reunião técnica, que minha formação é em filosofia, noto um instante de silêncio. Costumam olhar como se esperassem uma explicação: afinal de contas, o que faz uma filósofa em um time de tecnologia? A surpresa, na verdade, diz mais sobre o imaginário em torno das ciências humanas do que sobre mim. Essa distância é uma ilusão confortável. Filosofia e tecnologia caminham juntas e não conheci formação melhor para trabalhar nesse campo.
Hoje, trabalho com tecnologia e acessibilidade: sou programadora e desenho soluções digitais para quem lê o mundo de outras maneiras. Não consigo separar nenhuma dessas atividades da formação filosófica. O olhar das ciências humanas me obriga a perguntar antes de decidir, a buscar referências que não aparecem no manual técnico.

Na rotina dos projetos, são escolhas aparentemente secundárias que determinam os rumos de tudo: definir prioridades a partir de números ou ouvir experiências individuais? Adotar padrões consolidados ou criar soluções do zero? Esses dilemas não se resolvem com algoritmos. O traço comum dos projetos bem-sucedidos não é apenas a técnica, mas a qualidade da escuta.

Essa perspectiva não é rara no universo da tecnologia, embora quase nunca seja explicitada. Não por acaso, alguns dos nomes mais influentes do setor vieram das ciências humanas. Peter Thiel, por exemplo, cofundador do PayPal, construiu boa parte de sua visão de inovação a partir de conceitos filosóficos, especialmente da teoria mimética de René Girard. Reid Hoffman, criador do LinkedIn, também tem formação em filosofia, o que se reflete em sua preocupação ética com redes e conexões. Stewart Butterfield, responsável pelo Slack, cita frequentemente a influência da filosofia em sua maneira de pensar produtos e equipes. Não são casos isolados: há uma relação consistente entre quem aprende a lidar com perguntas difíceis e quem inova em ambientes complexos.

Na tecnologia, nada é realmente neutro. Toda arquitetura de sistema reflete escolhas: quem pode acessar, quem fica de fora, que tipo de leitura se privilegia, que tipo de diferença se tolera. Isso é filosofia aplicada, mesmo que os envolvidos nunca tenham lido um só parágrafo de Aristóteles. Decisões técnicas não existem no vácuo: carregam implicações de linguagem, de inclusão, de justiça. Cada botão, cada fluxo, cada política de acesso é também uma afirmação sobre o que importa, sobre quem importa.

Se existe uma formação capaz de nos preparar para esse tipo de responsabilidade, é a formação das ciências humanas. É nelas que aprendemos a duvidar de atalhos fáceis, a negociar critérios conflitantes, a reconhecer que respostas únicas dificilmente dão conta da complexidade dos problemas reais. São as humanidades que nos treinam a identificar as perguntas que ainda não foram feitas — e, assim, evitar que escolhas importantes passem despercebidas.

A tecnologia pode prometer eficiência e escala, mas quem garante relevância e permanência é o olhar crítico formado pelas ciências humanas. O desenvolvimento sério exige mais do que domínio técnico: exige reflexão, responsabilidade e disposição para jogar tudo para cima e começar de novo.

Se o objetivo é construir tecnologia que não apenas funciona, mas faz sentido, ele passa, necessariamente, pelas perguntas certas. As perguntas certas, quase sempre, começam na filosofia.

Nágila Seidenstucker, Filósofa (UFMS), Supervisora de Desenvolvimento, Inovação (e de pequenas crises filosóficas). E-mail: [email protected].

Este artigo é resultado da parceria entre o Jornal O Estado de Mato Grosso do Sul e o FEFICH – Fórum Estadual de Filosofia e Ciências Humanas de MS.

 

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