Em pleno século XXI é inacreditável que ainda existem milhares de brasileiros que não possuem documentação civil. Entre os grupos mais afetados por essa invisibilidade estão os povos indígenas, revelando uma das faces mais silenciosas da desigualdade social no país, as barreiras para o acesso à documentação civil básica — Registro Civil, CPF ou Carteira Nacional de Identificação, e consequentemente, Título de Eleitor e Carteira de Trabalho
A ausência de documentação civil extrapola os limites da burocracia, escancarando a negação de direitos fundamentais, pois, sem documentação, indígenas têm dificuldades para acessar direitos sociais e de cidadania, como realizar matrícula na escola, acessar direitos trabalhistas e previdenciários (aposentadoria, salário-maternidade, auxílio-doença), acessar programas sociais como o bolsa-família, programas habitacionais, programa luz para todos, entre outros, e também para exercer o direito ao voto, bem como acessar serviços de saúde, ou seja, exercer sua cidadania plena. Esta situação se agrava quando tratamos de comunidades isoladas, ou de difícil acesso ao perímetro urbano. Na fronteira, a falta de reconhecimento formal reforça um histórico de exclusão, agravando ainda mais as condições de vulnerabilidade de muitas comunidades.
A Constituição de 1988 reconhece os povos indígenas como sujeitos de direitos originários sobre suas terras, culturas e formas de organização, mas como sabemos, analisando o contexto nacional, repleto de políticas públicas ineficazes, esta garantia legal não torna nada simples. Iniciativas de mutirões de documentação representam um esforço contínuo e articulado, entre os governos federal, estaduais e municipais, para garantir o acesso universal à documentação civil. Isso inclui levar os serviços até as aldeias, respeitando os tempos e culturas locais.
Diante desta realidade, a UFGD, com o projeto de extensão “Acesso as Políticas Públicas para Indígenas da Aldeia Jhatayvary – Lima Campo-Ponta Porã/MS (ODS 10)”, coordenado por mim, tem articulado parcerias com a Prefeitura Municipal de Ponta Porã, e órgãos como a Defensoria Pública da União, Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), Receita Federal do Brasil, Núcleo Regional de Identificação de Ponta Porã, Núcleo Institucional de Promoção e Defesa dos Povos Indígenas e da Igualdade Racial e Étnica da Defensoria Pública Estadual de Mato Grosso do Sul, garantindo a emissão de 160 Carteiras de Identificação Nacional, 16 títulos de eleitor e 12 Registros de Nascimento Civil, mais de 200 emissões de CPF (cadastro e segunda via), o que enfatiza a importância de projetos que mitigam as dificuldades, mas ainda insuficientes frente à dimensão do problema.
Garantir documentação civil é garantir existência. É reconhecer a dignidade de milhares de cidadãos que seguem historicamente marginalizados, porém travestidos de resistência e luta, reafirmando diariamente seu direito de pertencer, existir e SER. A invisibilidade civil dos povos indígenas não é apenas uma falha administrativa: é uma violação de direitos humanos que exige resposta urgente e comprometida, e esta resposta deve partir de todos nós.
Por fim, conforme afirma, Rosângela, Agente Indígena de Saúde da aldeia Jhatayvary: “Ter documentos civis, garante direito à nossa autodeterminação, direito à vida, saúde, educação e a terra e ao tekorhá. E sem documentos nada disso é possível. E ter os documentos não nos tira a condição de sermos indígenas”.
Este artigo é resultado da parceria entre o Jornal O Estado de Mato Grosso do Sul e o FEFICH – Fórum Estadual de Filosofia e Ciências Humanas de MS
Alexandre Bergamin é docente da UFGD. E-mail: [email protected]
Kamila Madureira é doutoranda da UFGD. E-mail: [email protected]
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