Ko’apy aeko okara jeguaha, que pode ser traduzido como “o espaço onde se pinta”, foram as palavras entoadas pela anciã dona Adelaide durante o “guaxire” — canto/reza — na primeira aula do curso de licenciatura intercultural indígena para estudantes Kaiowa e Guarani, da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul. A disciplina, Epistemologias Indígenas, abordou, entre outros temas, a produção do conhecimento a partir das perspectivas indígenas. O “espaço onde se pinta”, para além de sua concepção cosmológica no universo Kaiowa e Guarani, assume hoje novos contornos — como a universidade e a escrita.
Sabemos que, quando se trata de ciência, há muitas diferenças entre o conhecimento científico e o conhecimento tradicional. Se por um lado essas diferenças são significativas, por outro, é essencial que sejam mantidas e reconhecidas. Enquanto a ciência ocidental se pretende universal, hegemônica e verdadeira, o conhecimento tradicional encontra na diversidade sua essência. Afinal, existem tantos modos de conhecer quanto existem povos. Por isso falamos em “saberes tradicionais”, no plural.
Lévi-Strauss, em seu livro “O Pensamento Selvagem”, destacou que todo pensamento é pensamento; o “selvagem” aqui diz respeito à forma de pensar, não ao pensador. A partir disso, compreendemos que não há oposição entre a ciência acadêmica e a ciência indígena, mas sim que ambas partem de lugares e lógicas distintas. O que muda, basicamente, é a matéria-prima e a finalidade do conhecimento. Os modos de conhecer e classificar o mundo são diversos e estão em constante transformação. Mas seria possível construir conexões entre a ciência ocidental e os saberes tradicionais?
Talvez a escolha do “guaxire” entoado por dona Adelaide nos permita imaginar essas conexões. A presença de pesquisadores indígenas nas universidades representa uma grande oportunidade de interlocução. Uma das principais diferenças entre os modos de conhecer indígenas e a ciência ocidental está na indissociabilidade entre natureza e cultura — um aspecto reconhecido em publicações científicas de relevância incontestável, como a revista Science, que em 2024 publicou o artigo “Indigenizando as Ciências da Conservação para uma Amazônia Sustentável”. O texto aborda a importância do diálogo entre os conhecimentos indígenas e ocidentais por meio da indigenização da ciência, e conta com a autoria de vários pesquisadores indígenas.
Quando se fala em biodiversidade e sustentabilidade, é comum que o foco se volte para questões ambientais, muitas vezes sem incluir os grupos humanos nesse processo — refletindo uma visão que separa radicalmente natureza e cultura. O debate contemporâneo sobre sustentabilidade pode, então, ser um chamado para restabelecer essa conexão. O chamado aqui é para que a sociobiodiversidade e os povos que habitam florestas, matas, rios e outros territórios sejam reconhecidos com a seriedade que merecem, junto com os conhecimentos que cultivam sobre e nesses ambientes — saberes construídos e praticados há séculos de forma não predatória, fundamentados em valores que hoje chamamos de sustentáveis.
Afinal, qual é a real importância do conhecimento tradicional na preservação da sociobiodiversidade e na construção de formas de vida mais sustentáveis? Estudos recentes reforçam essa relevância. Dados do MapBiomas indicam que, entre 1985 e 2023, as Terras Indígenas perderam apenas 1% de sua vegetação nativa, enquanto áreas privadas perderam 28% no mesmo período. Além disso, as Terras Indígenas são responsáveis pela preservação de 30% da biodiversidade brasileira. Esses números evidenciam o papel fundamental dos povos indígenas na conservação ambiental e na promoção de práticas sustentáveis.
O conhecimento tradicional indígena certamente não é o mesmo que o conhecimento científico ocidental, mas é também um saber científico — com pressupostos próprios, que precisam ser respeitados. A ciência indígena possui fundamentos diferentes da ciência ocidental, e ambas podem dialogar na construção de um futuro mais sustentável.
Reconhecer o potencial inovador dos conhecimentos tradicionais e dos modelos de sustentabilidade que essas comunidades desenvolvem — por meio de práticas e saberes específicos — pode enriquecer a ciência ocidental. Na diferença e na colaboração reside o verdadeiro valor tanto da ciência quanto dos conhecimentos tradicionais, também científicos. Essas colaborações geram saberes diversos e fortalecem os vínculos com os territórios, possibilitando ações conectadas às necessidades reais das pessoas e da natureza. Sustentabilidade, afinal, não é apenas um conceito técnico, mas uma prática coletiva e cotidiana, construída por quem vive e transforma o território.
Como disse Ailton Krenak: “Nós não estamos defendendo a natureza. Nós somos a natureza nos defendendo.”
Amanda Danaga é docente da UEMS, no ProfSocio e atua no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS-UNESP) e no Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGANT-UFGD).
Este artigo é resultado da parceria entre o Jornal O Estado de Mato Grosso do Sul e o FEFICH – Fórum Estadual de Filosofia e Ciências Humanas de MS.
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