Ciência, Fé e Modernidade

Josemar de Campos Maciel - Foto: divulgação
Josemar de Campos Maciel - Foto: divulgação

Existe um debate sobre Santo Agostinho, ocorrido desde o início do século XX entre dois jesuítas, Eugène Portalié e Henri de Lubac, que, entre tantos outros debates, revela quanto o estudo da relação entre fé e ciência pode ser exigente e ilustrativo para a sociedade contemporânea. A recente eleição de um Papa da Ordem de Santo Agostinho reforça essa importância. Vejamos.

O Padre Portalié, então teólogo consagrado, num pequeno texto de 1896, “O fim de uma mistificação”, criticou interpretações distorcidas, segundo ele, do pensamento agostiniano, defendendo uma leitura que se ativesse aos textos originais. Isso implicaria na leitura atenta de mais de dois mil títulos em latim. Parte do fruto do seu trabalho foi recolhido em um artigo sobre Agostinho para uma enciclopédia católica francesa. Virou livro, bem depois, em inglês, o raro “Guia ao pensamento de Santo Agostinho” (1960). Seu alvo era o Padre Henri de Lubac, que respondeu com garbo em diversas obras, das quais se destacam as “Notas sobre Santo Agostinho” (1950), e a monumental “Exegese Medieval”, obra-prima em quatro volumes (1959, 1960, 1961, 1964). Ele concordava com a necessidade de uma leitura rigorosa dos originais, mas defendendo a importância da tradição histórico-teológica, levando em conta a evolução sistêmica da doutrina cristã que, segundo ele, é mais fiel do que aparenta ao depósito da fé. Esse complexo debate não é uma disputa qualquer, pois mostra diferentes abordagens da tradição teológica, com implicações para a compreensão do Concílio Vaticano II, 1965, fortemente agostiniano. A polarização entre De Lubac e Portalié é fundamental para contextualizar a posição do catolicismo diante da modernidade. As discussões revelam diferentes formas de entender a autoridade moral e o papel da Igreja Católica que, também, convoca à sua interlocução os outros grandes monoteísmos, o judaísmo e o Islã.

Agostinho é um pensador politicamente fundamental e o inaugurador do Ocidente, para o bem e para o mal. É alguém importante, a ponto de historiadores, como Henri Irenée Marrou, Edward Gibbon e Marc Bloc, situarem o início da Idade Média um pouco depois da sua morte, com a queda do Império Romano. De fato, quando morre Agostinho, abre-se a chamada fortuna crítica da sua obra, que consolida a aliança entre o decadente Império Romano e o robustecido Cristianismo. Essa aliança vai culminar na visão de mundo dos regimes políticos e do sistema cultural europeus até aproximadamente o século XVI. Não por acaso, a maior baliza teológica para todo o Ocidente é a obra de Agostinho, com sua sofisticada e desafiadora síntese entre conhecimento filosófico, teológico, escriturístico e moral. Por outro lado, há estudiosos de grande porte, exemplificados pelo Pe. Portalié, que defendem um olhar mais intrínseco, lembrando que se trata de um santo canonizado, um Doutor da Igreja. Esse título é reservado aos pensadores que balizaram estruturalmente o pensamento católico. Agostinho está do lado de Gregório Nazianzeno, Gregório de Nissa e Basílio de Cesaréia, por exemplo. A obra agostiniana possui grande poder de síntese e de autobalizar-se.

Qual das duas correntes terá mais força? Sigamos com interesse o desenrolar do pontificado de Leão XVI. Certamente, o retorno a debates fundantes como este é crucial para compreender os desafios e oportunidades da Igreja Católica. Ao aprofundar nossa compreensão, contribuímos para um diálogo mais informado sobre o papel da fé na sociedade.
Josemar de Campos Maciel é Doutor em Psicologia (PUC-Campinas) e professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Local da UCDB. E-mail: [email protected].

 

Este artigo é resultado da parceria entre o Jornal O Estado de Mato Grosso do Sul e o FEFICH – Fórum Estadual de Filosofia e Ciências Humanas de MS.

 

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