Bebês Reborn: como lidar com isso?

Foto: reprodução
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Recentemente ganharam as redes sociais e as diferentes mídias notícias envolvendo atitudes de mulheres que agiram esperando que bonecas “reborn” fossem tratadas como seres humanos. Em um dos casos, a mãe reivindicava que seu suposto bebê fosse atendido pelo Sistema Único de Saúde. Em outro, uma trabalhadora requereu que seu empregador lhe concedesse licença-maternidade para cuidar do “filho”.

As bonecas “reborn” são muito semelhantes a bebês de verdade. São desenvolvidas com uma tecnologia que impressiona pelo resultado. Os preços também são elevados, chegando a custar R$ 15.000,00 (quinze mil reais), de acordo com consultas feitas pela CNN.

Embarcando de Brasília para Campo Grande, eu me lembrei da época em que cursei o Doutorado, enfrentando semanalmente a ponte aérea para o Rio de Janeiro. Prestei atenção no fluxo de pessoas, que são muitas, as quais não conheço. Provavelmente não voltarei a rever nenhuma delas. Recordei o quanto era difícil almoçar no aeroporto de Congonhas todos os domingos ao lado de estranhos, longe do meu companheiro de vida e das minhas filhas. O antropólogo Marc Augé, na obra “Non-lieux, introduction à une anthropologie de la surmodernité” (Não-lugares, introdução a uma antropologia da supermodernidade”, tradução direta), fala que lugar é um espaço que as pessoas incorporam à sua identidade, compartilhando referências sociais. O aeroporto, ao contrário, é um “não lugar”, onde relações, história e identidade são apagadas; ou seja,  as humanidades perdem o significado.

E foi sob essa perspectiva que resolvi analisar o fenômeno mediante o qual uma boneca adquire para algumas mulheres o significado de filhos e filhas. Tive a alegria de ser mãe de três meninas, e quando eu ia buscá-las na escola, ficava observando as crianças que saíam a cada momento. Cada uma mais linda do que a outra. Algumas, talvez, mais bonitas do que as minhas. Mas jamais pensei em trocá-las. Para mim, só importavam minhas crianças. E não apenas porque nasceram do meu ventre. Mas porque desenvolvi, em relação a elas, cuidados, dedicando meu afeto de forma que elas adquiriram para mim forte e inafastável significado.

Assim também as mães de bebês “reborn” dedicam seu carinho àquela boneca, que deixa de ser simplesmente um objeto, e passa a adquirir para ela significado. Desde a infância, nós meninas, somos estimuladas a brincar desta forma. Ser mulher no século XXI exige de nós um esforço hercúleo. Não basta mais ficarmos em casa, cuidando dos nossos filhos, lavando, passando, cozinhando, deixando a casa habitável e aprazível para toda a família. Vamos para o mercado de trabalho disputar a vaga com homens que não têm essas responsabilidades. Que não estão em igualdade de condições com a gente. Que não vão parir e passar a faltar no trabalho porque um filho ficou doente. Quando uma criança tem febre, quem vai levá-la para buscar atendimento médico é sempre a mãe.

Alguns homens, ao lerem isso, talvez pensem: “eu não sou assim, eu ajudo minha mulher”. Esse pensamento por si só já é cruel, pois parte do pressuposto de que lidar com as tarefas domésticas é dever indiscutível das mulheres. Já nascemos com essa atribuição? De forma alguma!! Ela nos foi delegada pela sociedade, e mesmo aqueles homens que nos “ajudam”, o fazem pensando que estão sendo altruístas por prestarem um favor, quando na verdade estão fazendo o que é sua obrigação: lavar sua própria roupa; a louça; cozinhar e limpar o espaço no qual vive. Esta obrigação é de cada pessoa humana, e não das mulheres.

A contemporaneidade não desenvolveu mecanismos para compensar a mulher que tem filhos por suas perdas na carreira profissional, em decorrência da maternidade. Só me dei conta disso quando nasceu a minha primeira filha. Casada com um advogado que era meu sócio, percebi que fiquei muito atarefada, fragilizada pelos efeitos colaterais do parto cesariano e pela depressão pós-parto, da qual não se falava na época (30 anos atrás) e pela qual me culpei muito. Como posso estar triste se estou realizando o meu desejo de ser mãe? Se amo tanto esse bebê que Deus me deu a graça de conceber? Eram perguntas que não calavam.

Nós, mulheres, carregamos as dores do mundo. Nossos filhos são como pedaços de nós. Somos árvores das quais eles são folhas, flores e frutos. Somos nós que mais sofremos em cenários de guerras, fome e de mudanças climáticas. Diante do peso da vida, muitos homens vão embora, viver novas aventuras com mulheres mais jovens. Ou seja, se quisermos manter nossas famílias, temos que ser boas mães, boas esposas, boas profissionais e ainda “temos que ser bonitas”. Usar luva e lenço no cabelo para não ficar impregnadas do cheiro de alho e de cebola; arrumar tempo e dinheiro para a academia, a manicure, cabelos, roupas, sapatos, etc, etc, etc…

Neste cenário, o fenômeno dos bebês “reborn” deve ser tratado pela sociedade sob a perspectiva do acolhimento e não do julgamento, como está acontecendo. E nós, professores, devemos compreender isso, e ter cuidado para não fazer piadas e gracejos da situação. Somos referências para nossos alunos, e é muito séria a nossa responsabilidade sobre como esta geração vai enfrentar o problema.

Talvez ser mãe de um bebê “reborn” seja uma forma inconsciente de recuperar o lúdico, a infância na qual brincávamos com bonecas. Quando esse brincar procurava dar significado ao papel que assumiríamos quando adultas: o de cuidar da família. Ficou difícil demais exercer este papel no contexto de um capitalismo que explora miseravelmente as mulheres, relegando-as aos menores salários e às condições mais indignas de trabalho, ao mesmo tempo que exalta padrões de beleza inalcançáveis para a maioria de nós. Ante a globalização, na qual as pessoas estão a cada dia mais isoladas, somos nós, mulheres, que corremos maior risco. Eu procuro ter uma vida social intensa e um grupo muito animado de amigos. Procuro ser para eles essa luz que nos faz ver a vida com olhos mais abertos para o belo, a música, a dança, a arte.

Mas outras mulheres não têm esse perfil. Então, dar significado a uma boneca pode ser o caminho para escapar da solidão e da multiplicidade de tarefas e cobranças sobre o nosso gênero. Acolhimento e não julgamento é o desafio das humanidades.

Isto não significa que os bebês “reborn” devam ser atendidos na rede pública de saúde. Os limites da aceitação de cada “mãe de bebê ‘reborn’” devem ser pautados nas universidades, serem estudados de forma científica, e não motivo de chacota nas redes sociais. Há muitos exemplos de desumanização no ambiente acadêmico. Alunos de universidades públicas, que nos jogos escolares gritam para os times das instituições privadas: “vocês são burros”, “eu sou o filho que o seu pai sonhou”, e outras atrocidades. Se um jovem não conseguiu passar em uma universidade pública, pode ser por diferentes motivos, inclusive porque teve condições econômicas desiguais de acesso, e agora precisa se comprometer com um FIES e outras bolsas que o estado brasileiro passou a oferecer nas gestões do presidente Lula. Por essas e outras é que os conteúdos humanísticos devem estar em todos os cursos, e não apenas naqueles voltados para as ciências humanas. Trabalhar as subjetividades e parâmetros éticos deve ser a nossa tarefa.

Giselle Marques é Doutora em Direito com Pós-Doutorado em Meio Ambiente e Professora do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Meio Ambiente e Desenvolvimento Regional da UNIDERP-ANHANGUERA. E-mail: [email protected]

 

Este artigo é resultado da parceria entre o Jornal O Estado de Mato Grosso do Sul e o FEFICH – Fórum Estadual de Filosofia e Ciências Humanas de MS.

 

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