Espetáculo do grupo Fulano di Tal mistura performance e teatro refletindo sobre vivências na pandemia
Aceita uma taça de vinho? Então venha brindar com o teatro neste sábado! Estreou ontem (sexta, 25) e segue em cartaz neste sábado (26), às 20h, no Espaço Fulano di Tal, o espetáculo “SECO”. A peça é um mergulho sensível e provocador nas emoções que atravessaram o período pandêmico: afetos, dores, amores, ódios e guerras ganham forma no diálogo intenso entre dois personagens. No palco, os atores Douglas Caetano e Edner Gustavo dão vida a essa jornada emocional, sob direção e sonoplastia de Marcelo Leite e operação de luz de Breno Lucas.
O espetáculo SECO nasceu das experiências vividas durante o isolamento social da pandemia de Covid-19, ganhando forma no momento em que os encontros presenciais começaram a ser retomados. A proposta do grupo foi transformar em cena as mudanças emocionais e sociais provocadas por esse período de reclusão.
A dramaturgia foi construída de forma colaborativa, por meio de um grupo de WhatsApp, onde os artistas trocavam relatos pessoais a partir de provocações do diretor Marcelo Leite. Temas como medo, amor, solidão e os chamados “amores pandêmicos” serviram de base para a criação. O espetáculo tem entrada gratuita e classificação livre. A produção alerta para o uso de luzes estroboscópicas e orienta que pessoas fotosensíveis optem pelas últimas fileiras.
Vinho Seco
O título “SECO” carrega múltiplos significados dentro da narrativa e da proposta cênica do espetáculo. Segundo o ator Edner Gustavo para o Jornal O Estado, a escolha surgiu a partir de dois elementos simbólicos da rotina pandêmica do grupo: o vinho e o pão, ícones de partilha e sobrevivência que marcaram os encontros virtuais dos artistas durante o isolamento.
No entanto, o termo “seco” também traduz o impacto abrupto e violento da chegada da pandemia: cortes súbitos, perdas inesperadas, relações interrompidas ou iniciadas de forma brusca. Essa sensação de ruptura atravessa toda a encenação, refletida na dramaturgia, na iluminação, na trilha sonora e até na interação com o público. A secura, enquanto ausência de suavidade, estrutura tanto as relações entre os personagens quanto o modo como o espetáculo propõe suas quebras e silêncios.
“Cada paisagem sonora e visual que construímos parte da mesma lógica do texto: vem de nós, dos artistas criadores. O uso do plástico em cena, por exemplo, tem a ver com esse material que invadiu o nosso cotidiano, embalagens, proteção, uma tentativa constante de manter tudo limpo, seguro e estéril”, explica Edner.
Estes elementos remetem não apenas ao consumo excessivo, mas também seguem uma linha de estética hospitalar associada ao confinamento da pandemia. “A trilha sonora também segue esse caminho, feita a partir dos sons que nos atravessaram naquele momento e que, de alguma forma, ainda reverberam em nós”, complementa.
Amor, solidão, obsessão e mudança
Para Edner Gustavo, a performance funciona como um canal essencial para expressar essas vivências subjetivas, potencializando a autoria dos artistas e evitando que o processo se transforme em uma mera terapia coletiva.Essa combinação artística busca transformar emoções e rupturas pessoais em uma obra que dialogue diretamente com o público, ampliando o impacto e a relevância da narrativa.
“A performance está neste lugar de vazão para essas coisas todas que estavam presas com cada um dos intérpretes, permitindo que surjam na cena de forma subjetiva, refletindo as complexidades humanas”, explica.
Em Seco, o corpo ocupa um papel central na narrativa, muitas vezes substituindo ou ampliando a palavra. Edner explica que essa escolha está diretamente ligada à vivência do isolamento, quando o silêncio externo contrastava com o barulho interno das emoções.
“Esse é um dos nossos espetáculos com menos texto e mais fisicalidade, com o corpo gritando o que está sentindo.A pandemia forçou um convívio intenso , e essa presença solitária se reflete em cena por meio de gestos, movimentos e pausas que comunicam o que muitas vezes não foi dito.A palavra, quando aparece, nasce da experiência concreta de cada intérprete, funcionando como uma extensão do corpo e dos afetos vividos. É um teatro em que corpo e voz se entrelaçam para transbordar uma vivência que foi individual, mas também profundamente coletiva”, detalha.
22 anos de Fulano di Tal
Com 22 anos de trajetória, o Grupo Fulano di Tal é amplamente reconhecido por seu trabalho com a linguagem da comédia. No entanto, SECO representa uma ruptura significativa em seu repertório. Diferente dos trabalhos anteriores, SECO aposta em uma abordagem mais dramática, atravessada pela performance e por uma estética que reflete a dureza do período pandêmico, sem abrir mão da sutileza e da sensibilidade.
“Foi uma ruptura mais do que necessária. O espetáculo reflete um momento histórico em que o mundo parou e precisou se reorganizar para continuar. E quando tudo ainda estava passando, se acalmando, ficou a reflexão desse período histórico e que vivenciamos, sem buscar por isso, mas que está na história da humanidade e essa reflexão não podia passar ilesa pra gente enquanto grupo de teatro. Procuramos também dar leveza e sutileza a alguns temas espinhosos. Mas a realidade nua e crua em que vivemos durante o período pandêmico está ali”, afirma o diretor Marcelo Leite.
Para Edner Gustavo, SECO é um convite à memória coletiva. A proposta é fazer com que o público reviva, reflita e dialogue sobre um período que mudou o rumo da humanidade.
“É um espetáculo que fala sobre a gente, sobre um momento que marcou a nossa experiência humana para sempre. Assistir SECO é viver uma experiência pós-pandemia que ainda fala, profundamente, sobre a pandemia e sobre como ela nos transformou”. E conclui, com o tom simbólico que atravessa toda a obra: “E aí, aceitam uma taça de vinho?”
Serviço: O espetáculo é gratuito e será apresentado hoje, 26/07 (sábado), às 20h, no Espaço Fulano di Tal. Endereço: Rua Rui Barbosa, 3099 – Centro.
Amanda Ferreira