“Os Afetos dos Silêncios”: Projeto une dança, antropologia e preservação da memória cultural

Foto: Vaca Azul/Divulgação
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 Com apresentações gratuitas, digitalização de acervo e mesa redonda

 

Para celebrar seus mais de 30 anos de existência, a Ginga Cia. de Dança realiza em agosto o projeto ‘Os Afetos dos Silêncios’, idealizado por Ana Carolina Brindarolli e Maria Fernanda Figueiró. A iniciativa articula diferentes frentes: circulação de espetáculos, produção acadêmica, digitalização do acervo e uma mesa redonda com foco em reflexões sobre a violência de gênero.

O projeto possui financiamento do FMIC (Fundo Municipal de Investimentos Culturais), da Prefeitura de Campo Grande, por meio da Secult (Secretaria Executiva de Cultura).

“A pesquisa que estamos realizando é de caráter etnográfico, voltada diretamente aos processos do espetáculo: sua criação, manutenção, bastidores e as pessoas envolvidas. Nossos diálogos sobre gênero sempre foram constantes, e ganharam força quando a Ginga Cia. de Dança decidiu criar o espetáculo ‘Silêncio Branco’, cuja temática central é o feminicídio”, explica Maria Fernanda, que, assim como Ana, é também bailarina da companhia.

O projeto contempla apresentações gratuitas dos espetáculos ‘Silêncio Branco’, dirigido por Chico Neller, e ‘Rompendo o Silêncio’, com direção de Vanessa Macedo. ‘Silêncio Branco’, inclusive, foi contemplado pelo Prêmio Klauss Vianna, da Funarte (Fundação Nacional de Artes), o que permitiu sua apresentação em São Luís–MA. Na oportunidade, o projeto convida o público a doar alimentos não perecíveis como forma de contribuição à comunidade, posteriormente destinados à iniciativa Mães da favela, da CUFA (Central Única de Favelas) de Campo Grande.

“A ideia de desenvolver um projeto em parceria já nos acompanhava há tempos. Foi após um curso de dança com Eduardo Fukushima que conseguimos fechar algumas ideias e dar forma ao que antes era apenas um desejo compartilhado”, lembra Ana Carolina.

Outra frente importante do projeto é a digitalização e disponibilização online e pública, do acervo histórico da Ginga Cia. de Dança, com a criação de um site oficial contendo os 39 anos de materiais da companhia. O espaço digital será de uso exclusivo da Ginga e do diretor Chico Neller, como forma de preservar dados e garantir a continuidade do registro da memória artística do grupo.

Foto: Vaca Azul/Divulgação

Existir para resistir

A celebração dos 39 anos da Ginga também é um dos marcos do projeto. Para as proponentes, manter uma companhia de dança contemporânea ativa por quase quatro décadas em Mato Grosso do Sul é um ato de resistência. “Ao longo dessa trajetória, destacamos a formação de artistas, a criação de repertório autoral, o diálogo com diferentes públicos e linguagens, além da construção de espaços de troca, afeto e resistência”, pontua Ana Carolina.

“A gente pensa em como é difícil fazer arte hoje, mesmo a gente tendo políticas públicas voltadas para a área, tendo um debate que está levando à conscientização sobre que arte é profissão, que dança é profissão, eu fico imaginando como era fazer isso na década de 80, 90, quando a arte tinha ainda mais esse estigma de uma coisa marginalizada, de uma coisa que não tem importância, então, eu acho que essa foi minha maior surpresa com essa figura, que é Chico Neller”, comenta Maria.

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A dança como debate

A proposta de conectar arte, universidade e políticas públicas é potente, conforme Maria Fernanda, que reitera que a dança contribuiu para os debates de gênero e violência contra a mulher.

“Acredito que a dança é uma ferramenta histórica capaz de abordar temas, denunciar contradições e provocar o público. A proposta da Ginga e do diretor Chico Neller sempre foi tocar nas feridas e gerar inquietações. A dança pode redimensionar nosso olhar sobre o mundo e o corpo. Recebemos relatos impactantes de pessoas transformadas por nossas obras, o que mostra o quanto a sociedade ainda negligencia o poder transformador da dança”, opina.
Com um tema tão forte, a artista relembra relatos ao longo da jornada de apresentações.

“Recebemos relatos muito fortes ao longo de todo o processo, que nos impactaram, porque a gente, em companhia, pensava: ‘como assim, a nossa dança fez essa pessoa tomar X decisão na vida dela?’ Então, acho que isso é muito rico, e nós, enquanto sociedade, negligenciamos a capacidade que a dança tem de transformar o olhar, transformar o mundo, transformar a nossa maneira de enxergar esse mundo”, destaca.
“Foram muitas as reações do público. Em São Luís, mulheres que sofreram violência e hoje atuam no combate a esse problema se emocionaram e agradeceram por transformar o tema em denúncia. Mas a resposta que mais me marcou foi na estreia em Campo Grande, em 2021: uma mulher contou que, ao assistir com a filha de 15 anos, deu a mão para ela desde a primeira cena, e ambas se emocionaram profundamente. A filha, mesmo tão jovem, reconheceu o sofrimento da mãe e aquilo marcou a relação das duas. Isso mostra como a arte tem o poder de tocar cada pessoa de um jeito — seja com emoção, raiva ou indignação — e, ainda assim, cumprir seu papel”, completa.

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Várias áreas

O projeto também prevê a realização de uma mesa redonda com pesquisadoras da área de gênero e profissionais que atuam nas políticas públicas voltadas às mulheres. “Nosso objetivo foi criar um espaço de diálogo entre quem está na universidade e quem atua nas políticas públicas. Acreditamos que a dança é uma ferramenta de transformação social e deve ser reconhecida como linguagem capaz de abordar temas urgentes da contemporaneidade”, afirma Maria Fernanda.

A proposta inclui ainda a produção de um artigo etnográfico a partir dos dois espetáculos, aprofundando a relação entre arte e teoria. A produção é de autoria da Manaká Cultural.

“Todas as ações do projeto se complementam. O que mais me surpreendeu foi a capacidade de Chico Neller de sustentar, há 40 anos, com muitas lutas, uma companhia de qualidade em Mato Grosso do Sul. Quanto mais digitalizávamos sua história e a da Ginga, mais nos surpreendíamos com a riqueza dessa trajetória.”

Para o futuro, o desejo das bailarinas e da companhia é seguir criando e resistindo. “Continuar existindo já é um sonho e uma resistência. Queremos seguir dançando, formando, pesquisando e nos reinventando junto às pessoas que constroem essa história com a gente”, finaliza Ana Carolina.

Serviço: A circulação dos espetáculos será realizada nos dias 5 e 12 de agosto, às 19h, no Sesc Prosa, localizado na rua Anhanduí, 200, Centro. Os espetáculos são gratuitos, para maiores de 14 anos, com arrecadação de alimentos não perecíveis à CUFA (Central Única de Favelas). Já no dia 15 de agosto é vez da Mesa Redonda, realizada no Ginga Espaço de Dança, na rua Brigadeiro Tobias, 956, bairro Taquarussu, aberta ao público interessado.

 

Por Carolina Rampi

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