Em meio às homenagens do Dia dos Pais, celebrado no Brasil no segundo domingo de agosto, o amor paterno se mostra como um alicerce afetivo e cultural que atravessa gerações. Embora comemorada em datas diferentes ao redor do mundo, a essência da celebração permanece a mesma: reconhecer e valorizar a figura do pai como símbolo de cuidado, presença e legado.
Neste ano, o Jornal O Estado mergulhou nas histórias de pais e filhos que mantêm vivas tradições passadas entre gerações. De ensinamentos culinários e artísticos a práticas artesanais, esses laços foram além da convivência familiar e se transformaram em profissões, hobbies e até formas de terapia. Um retrato sensível de como o amor paterno pode se perpetuar através do fazer, do ensinar e do compartilhar.
Legado contínuo
O legado do biólogo Luiz Onofre Irineu, falecido em 2010 vítima de câncer no pulmão, ultrapassa os laços de sangue e se materializa na sensibilidade manual do filho Pedro Irineu (22), hoje violinista e entusiasta das artes manuais. Embora tenha perdido o pai ainda na infância, aos sete anos, Pedro guarda vivas as lembranças do pequeno quartinho da casa onde Luiz criava e consertava objetos com minúcia: madeira, ferramentas, miniaturas e consertos domésticos compunham o universo silencioso de um pai habilidoso.
Foi nesse ambiente repleto de ferramentas, madeira e miniaturas que Pedro desenvolveu, mesmo sem perceber, o gosto por “fazer com as mãos”, uma habilidade que hoje se manifesta tanto na criação de pelúcias quanto no sonho de montar miniaturas técnicas, paixão herdada indiretamente daquele pai que ele tanto admira. Ao preservar os kits deixados por seu pai e se preparar cuidadosamente para, no futuro, completá-los com o mesmo zelo e precisão, Pedro transforma o luto em inspiração. Nesse gesto silencioso e respeitoso, revela-se o verdadeiro legado deixado por seu pai: não apenas a técnica ou os objetos, mas o valor simbólico do que é transmitido entre gerações uma herança de afeto, identidade e memória.

Foto: (C) Acervo Pessoal Pedro Irineu
“Mesmo sem ter aprendido diretamente com meu pai, percebo que o que faço na arte tem muito dele. É como se, de alguma forma, eu ainda estivesse em contato com a presença e a memória dele. Tento caprichar nos detalhes, respeitar cada etapa do processo… e, no fundo, sempre quero chegar no nível que ele tinha. Acho que é uma forma do nosso vínculo continuar”, destaca.
Quando o amor se transforma em música
A presença paterna na vida de Pedro Irineu não se encerrou com a perda de seu pai biológico. Anos depois, durante o mestrado de sua mãe bióloga, Zielma Lopes, conheceu o também biólogo Dimitrius Cavalcante, que mais tarde se tornaria padrasto de Pedro e uma figura paterna marcante em sua formação. Foi com ele, dentro de casa e de maneira efetiva e cotidiana, que Pedro teve seu primeiro contato verdadeiro com a música. Aos 12 anos, pediu a Dimitrius que o ensinasse a tocar violão, um pedido simples que acabou abrindo caminho para o que viria a se tornar sua profissão e sua paixão. Atualmente, Pedro é violinista profissional e está no último ano da graduação em Música pela UFMS..
Com aulas informais e dedicadas, Dimitrius apresentou a Pedro os primeiros acordes, batidas e músicas. A partir desse incentivo inicial, o violão deixou de ser apenas um passatempo e se tornou uma porta de entrada para o universo musical. Hoje violinista, Pedro reconhece com clareza que sua trajetória como músico só foi possível graças à presença e ao incentivo do padrasto. Mais do que ensinar música, Dimitrius ocupou com naturalidade o papel de pai, participando ativamente da adolescência de Pedro e construindo com ele uma relação de afeto, cuidado e inspiração que segue viva até hoje.
“Eu aprendi violão sozinho na adolescência e ensinei ao Pedro os fundamentos da música popular. Na época ele ainda era criança, mas foi evoluindo, criando um estilo próprio. Quando chegou no ensino médio e começou a pensar em faculdade, se interessou mais pelo violão clássico. Eu disse que ele precisaria de um professor especializado. A gente conseguiu um professor, e ele seguiu se desenvolvendo. Fico muito orgulhoso de ver como ele cresceu por conta própria e, sinceramente, acho muito bonito ver que ele acabou me superando”, conta Dimitrius para a reportagem.
Sabor de afeto
É inegável que a cultura okinawana está enraizada nas fundações de Campo Grande. De avós, para pais e filhos, a imigração desse povo é lembrada, celebrada e repassada até hoje, seja por meio da história quanto por meio de algo que todos conhecem: o sabor.

Foto (C) Arquivo Pessoal
A Feira Central, que atualmente ocupa a 14 de julho, surgiu inicialmente como um espaço de venda de produtos hortifrutigranjeiros, em 1925. Porém, ao longo do tempo, outros tipos de comércio foram desenvolvidos no local, um deles sendo o alimentício, como o da família de Tadashi Gabriel Nishihira, considerado um dos pioneiros do sobá na Capital, e que hoje comanda a Barraca da Níria.
Para o jornal O Estado, ele relata que os avós foram os primeiros a vender sobá na Feira Central. Imigrantes da ilha de Okinawa, o prato era feito principalmente para outros imigrantes, que viviam um período de preconceito em Campo Grande, por suas tradições e costumes. Foi ali na barraca, que Tadashi passou grande parte da infância vendo o pai trabalhar com a mãe, perpetuando o legado dos avós.
“Eu lembro muito dos meus país lá. Os meus avós trabalharam na feira até os anos 1980, depois foram meus pais em diante. Então, toda a minha infância eu passei vendo meu pai trabalhando na feira, cuidando da parte administrativa, contabilidade, contas, enquanto a minha mãe ficava na cozinha”, relembra. “São memórias de uma feira antiga; acho que sou a última geração que ainda criança conseguiu presenciar a Feira Central. Tinha 10, 11 anos quando mudaram ela”.
Seguir os passos do pai e dos avós, dentro de um negócio tão simbólico para a cultura nipo-campo-grandense traz para o empresário um misto de responsabilidade e orgulho. “Por um lado, é uma honra, é um legado que minha família deixa. A imigração okinawana deixou um marco em Campo Grande, porque 85%, 90% dos japoneses daqui vieram da ilha de Okinawa. Meu avô foi o primeiro a vender sobá na Feira Central, então vejo o sobá como um marco na feira e, saber que foi meu avô, avó, mãe e pai que fizeram isso, me honra bastante”, revela. “Então é isso, um legado, uma responsabilidade minha, mas também um orgulho, uma alegria poder contar a história dos meus antepassados”,.
O caldo do sobá da Barraca da Níria é uma mistura de afeto com lembrança da parte de Tadashi. “Ainda uso a mesma receita dos meus pais, que usavam a mesma receita dos meus avós. Houveram adaptações, como por exemplo, a substituição do frango pelo caldo de galinha, mas de maneira geral a receita de mantém intacta, original de Okinawa”, explica. “Lembro que depois da infância meu pai e minha mãe não queriam que eu trabalhasse na feira, então eles nunca me ensinaram a fazer esse caldo; eu aprendi de olho, medindo a quantidade dos temperos antes e depois da minha mãe usar. Aí eu repliquei”, revela.
Ao falar sobre o futuro da tradição de sobá herdada dos pais e avós, Tadashi é realista. “Minha família é pequena, na verdade. Eu sou filho único, não tenho com quem compartilhar tanto a parte de responsabilidade quanto a parte do orgulho de ser filho do meu pai, de ser neto novo”, explica.
Ainda assim, ele reconhece que o sobá é um símbolo da trajetória da família. “Na parte afetiva, ele liga, obviamente. Nosso sobá é um marco pra mim no sentido de falar sobre a carreira, sobre o que meus pais entregaram para Campo Grande — e, de certa forma, o que meus avós também entregaram”.
Feriado?
Para Tadashi, o Dia dos Pais tem uma coincidência curiosa e trabalhosa. “Ironicamente ou não, o Dia dos Pais sempre vai ser o último dia do Festival do Sobá. E o Festival do Sobá é um marco do traço da imigração okinawana em Campo Grande. É um marco que mostra o quanto uma etnia que vem para uma cidade consegue alterar a cultura dela. Afinal, o sobá é o patrimônio material da cidade.
O pai de Tadashi ainda é vivo, mas enfrenta alguns problemas de saúde. “Meu pai é um pouquinho acamado, ele tem algumas debilidades, mas ele ainda é são, ele ainda conversa e tudo mais. Provavelmente a gente sai com mais calma na segunda-feira.”
Já o avô, que iniciou a tradição, faleceu há mais de uma década. “Meu avô faleceu já tem mais de 10 anos. Quando eu tinha, acho que 17 anos, ele faleceu. Ele carrega uma memória, uma lembrança… na época que ele ainda conversava comigo, o português era bem ruim, mas a gente se entendia.”
A lembrança desperta também um sentimento de desejo e reconhecimento. “Eu acho que gostaria que ele se sentisse orgulhoso do que eu estou fazendo hoje em dia. Eu espero que ele se sinta orgulhoso do que eu estou fazendo hoje em dia”.
Por: Amanda Ferreira e Carolina Rampi
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