Repórter icônica e pioneira da TV brasileira se despede, após décadas inovando e se aventurando mundo afora
Por Meri Oliveira – Jornal O Estado do MS
A jornalista Glória Maria foi um exemplo e uma inspiração, ao longo de várias décadas, para vários aspirantes a jornalistas, para as “focas” – como são chamados os profissionais em início de carreira –, e para o público em geral, que adorava se sentar à frente da telinha para ver suas histórias. Mas, na manhã dessa quinta-feira (02), as aventuras de Glória chegaram ao fim: a repórter partiu, aos 73 anos, vítima de câncer, e deixa duas filhas, Laura e Maria. Não veremos mais novas reportagens com aquele sorriso largo e espontâneo.
A informação foi confirmada pela Globo em nota enviada à imprensa. Em 2019, ela recebeu o diagnóstico de câncer no pulmão, que foi tratado com êxito a partir de imunoterapia. A doença, no entanto, se espalhou pelo cérebro. A apresentadora fez uma cirurgia, também bem-sucedida, mas precisou voltar a se tratar no ano passado.
Segundo a emissora, o tratamento que Glória fazia para combater as metástases cerebrais deixaram de fazer efeito nos últimos dias. “Glória marcou a sua carreira como uma das mais talentosas profissionais do jornalismo brasileiro, deixando um legado de realizações, exemplos e pioneirismos para a Globo e seus profissionais”, diz a nota.
Vida e carreira
Glória Maria Matta da Silva nasceu no Rio de Janeiro. Filha do alfaiate Cosme Braga da Silva e da dona de casa Edna Alves Matta, estudou em colégios públicos e sempre se destacou. “Aprendi inglês, francês, latim e vencia todos os concursos de redação da escola”, lembrou, ao Memória Globo.
Glória também chegou a conciliar os estudos na faculdade de Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica (PUC-Rio) com o emprego de telefonista da Embratel. Em 1970, foi levada por uma amiga para ser radioescuta da Globo do Rio. Em uma época sem internet, era ouvindo as frequências da polícia que se descobria o que acontecia na cidade. Fazer uma ronda de telefone, ligando para batalhões e delegacias, também era tarefa de um radioescuta.
Na Globo, tornou-se repórter numa época em que os jornalistas ainda não apareciam no vídeo. A estreia como repórter foi em 1971, na cobertura do desabamento do Elevado Paulo de Frontin, no Rio de Janeiro. “Quem me ensinou tudo, a segurar o microfone, a falar, foi o Orlando Moreira, o primeiro repórter cinematográfico com quem trabalhei.”
Glória Maria trabalhou no “Jornal Hoje”, no “RJTV” e no “Bom Dia Rio” – coube a ela a primeira reportagem do matinal local, há 40 anos, sobre a febre das corridas de rua. No Jornal Nacional, foi a primeira repórter a aparecer ao vivo. Cobriu a posse de Jimmy Carter em Washington e, no Brasil, durante o período militar, entrevistou chefes de Estado, como o ex-presidente João Baptista Figueiredo.
“Foi quando ele [João Figueiredo] fez aquele discurso ‘eu prendo e arrebento’ – para defender a abertura (1979). Na hora, o filme acabou e não tínhamos conseguido gravar. Aí eu pedi: ‘Presidente, é a TV Globo, o Jornal Nacional, será que o senhor poderia repetir? Problema seu, eu não vou repetir’, disse Figueiredo. Onde ela chegava, o ex-presidente dizia para a segurança: ‘Não deixa aquela neguinha chegar perto de mim’”, relembra.
A partir de 1986, a jornalista integrou a equipe do “Fantástico”, do qual foi apresentadora de 1998 a 2007. Ficou conhecida pelas matérias especiais e viagens a lugares exóticos, e por entrevistar celebridades como Michael Jackson, Harrison Ford, Nicole Kidman, Leonardo Di Caprio e Madonna.
Amizade
Para a jornalista Cláudia Gaigher, que foi repórter da TV Morena, afiliada da Rede Globo em Campo Grande, Glória Maria foi, desde sua infância, fonte de inspiração, admiração e respeito. Adulta e já jornalista, Gaigher teve a oportunidade de dividir redação com Glória, e conta sobre como foi essa convivência. “Muitas vezes. Nos encontrávamos primeiro na redação do diário na Globo Rio, depois na redação do Fantástico e nos últimos anos na redação do Globo Repórter. Eu ia para o Rio para editar e fechar os programas e reportagens especiais que eu gravava pelo Brasil, e sempre encontrava a Glória. Ela chegava na redação já espalhafatosa. Sempre falando, ao telefone ou com as pessoas ou com todos ao mesmo tempo. Um furacão.”
Segundo Cláudia, o ícone sempre tinha alguma coisa a dizer. “Sempre contava alguma história ou trazia novidades. Sobre as filhas, sempre tinha uma foto ou peripécia para contar. Atenciosa comigo, sempre que nos víamos queria saber como estava o Pantanal, comentava alguma reportagem minha a que ela tinha assistido, e perguntava sobre o meu filho. Queria saber como ele estava e emendava contando alguma coisa das suas filhas. Lembro muito dela contando na redação como foi esse encontro de alma com as meninas e como veio a decisão de ser mãe. Sempre sorridente e com aquele tom de voz inesquecível”, relembra.
“Assim era a Glória. Uma figura. Novidadeira, ela sempre descobria as mais recentes descobertas de vitaminas, suplementos, pílulas da beleza e da vida. Certa vez, eu estava fechando um programa sobre alimentos e tinha gravado em São Paulo sobre a mistura da moda para emagrecer, a tal ração humana. Era uma mistura de farelos de tudo quanto é coisa que a mulherada estava tomando para emagrecer”, conta Cláudia.
“Eu estava no computador escrevendo o texto e vendo as imagens. Comentei da tal ração e a Glória, que estava no computador ao lado, levantou a cabeça e falou: ‘Eu quero experimentar! Onde compro?’ Ela comprou mesmo, e ainda levou a mistura na bagagem de uma viagem internacional que faria dias depois para gravar um programa. Não sei como passou na alfândega… E foram dezenas de encontros nesses meus mais de 25 anos de TV”, relata a repórter.
Legado
Para Cláudia Gaigher, Glória Maria fez história e fez escola. “Glória deixa um legado. A primeira repórter negra que abriu espaço para tantas gerações. Ela encarou os desafios, acreditou e não aceitou parar ou desistir sem antes alcançar os seus objetivos. Ela virou a estrela que sempre foi aqui conosco. Imagino a festa que fará ao reencontrar tantas pessoas queridas que já estão no outro plano.
Para o jornalismo, ela deixou a sua marca e o seu legado: ‘autêntica, se informe sobre o assunto que vai noticiar e seja verdadeira. Assim as reportagens serão corretas e inesquecíveis’. Glória era um espetáculo à parte e também uma personagem das suas histórias. Que descanse e continue inspirando multidões.”
Xará sul-mato-grossense
Glória Maria marcou a história da TV e do jornalismo brasileiro, inspirou a outros profissionais e, é claro, como o nosso povo gosta de homenagear os ídolos batizando os filhos com seus nomes, aqui temos, também, uma Glória Maria jornalista. “Meu nome seria Rafaela, já estava tudo certo, até que nos ‘45 do segundo tempo’, minha avó, que era extremamente fã da Glória Maria, decidiu que seria Glória Maria e não teve santo no céu e na terra que a fizesse mudar de ideia. Três anos após meu nascimento, minha avó perdeu a memória em decorrência do Alzheimer, ela esqueceu do nome de praticamente todo mundo, mas a Glória Maria ela continuava assistindo religiosamente”, conta a jovem profissional, que se chama Glória Maria de Pinho Silva Lima.
Como não poderia deixar de ser, a repórter renomada se tornou inspiração também para Glória. “Glória Maria foi pioneira em muitas coisas, por fazer parte de grandes marcos, ficará marcada na nossa memória, eu tenho 23 anos e cresci assistindo à Glória Maria, uma grande profissional, referência para todo mundo, desde os mais novos aos mais velhos.”
A escolha pela mesma profissão só fez aumentar a admiração da jovem. “Cresci assistindo à Glória, sempre me senti próxima a ela, justamente por ter nomes iguais. Amava as matérias que ela fazia para o Globo Repórter. Hoje, exercendo a mesma profissão que ela, a admiração só aumentou.”
Mas ter o mesmo nome e a mesma profissão de alguém tão presente na vida do brasileiro é algo que tem lá seu peso. “É uma responsabilidade muito grande ser jornalista e ter o nome de uma jornalista tão consagrada. Quando alguém pergunta meu nome e minha profissão automaticamente ligam a minha imagem à dela, ainda mais sendo uma mulher negra; falam que é muita coincidência. Já me chamaram várias vezes de Glória Maria do Pantanal e chegar até aquele nível leva tempo.”
Honra
O repórter Alysson Maruyama, da TV Morena, comenta que Glória Maria era quase que “hors-concours”, em termos de inspiração para novos jornalistas. “Não tem um jornalista de TV que não se inspirou na trajetória de Glória Maria. Sempre admirei o jeito despojado de conduzir as reportagens, de forma leve, com uma postura autêntica. Glória foi sempre vanguardista”, dispara, deixando clara a admiração.
Entretanto, o repórter não chegou a conhecê-la pessoalmente. “Infelizmente, não tive oportunidade de conhecê-la pessoalmente, mas ouvi lindos relatos sobre ela. No ano passado, Glória Maria apresentou as reportagens na minha estreia no Globo Repórter. Não tenho nem palavras para descrever a felicidade. Me sinto honrado, mesmo que sem conhecê-la, de dividir um trabalho com a pioneira do jornalismo”, conclui.
Glória Maria foi, acima de tudo, uma profissional que marcou o jornalismo não apenas por ser uma repórter de vanguarda. Mais do que isso, Glória Maria foi e é importante para o jornalismo brasileiro, pelo pioneirismo em determinados aspectos, mas principalmente por ser uma mulher preta que mostrou, por meio de seu trabalho, talento, visão e desprendimento, que na TV e no jornalismo brasileiro, de forma geral, tem espaço para profissionais pretos. Glória, mais do que “jornalistar”, vivenciou, de fato o jornalismo.
Até o fechamento desta edição não foram divulgadas informações sobre o velório.
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