Artista visual mergulha em suas memórias e sonhos passados, traduzindo-os em um livro e fanzines de expressão íntima e única
Quem nunca folheou diários, fotos, músicas ou anotações antigas e não se deixou invadir por uma onda de nostalgia, lembrando de momentos passados que, de alguma forma, moldaram quem somos? Partindo dessa conexão entre o passado e o presente, a artista visual Mär Cozta mergulha em seu projeto, que resultou em três publicações literárias independentes (dois fanzines e um livro de artista), explorando a fascinante relação entre sonho e memória.
O projeto, desenvolvido como parte de seu trabalho de conclusão de curso em Artes Visuais pela UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul), investiga a importância da memória no surgimento das imagens em sua produção artística. O primeiro trabalho da artista, Fragmentos de Sonhos, consiste em uma série de fanzines que reúnem relatos curtos de sonhos, apresentados no formato de quadrinhos. Já o segundo trabalho, o livro Mergulhado em Sonho, adota uma abordagem completamente manual e artesanal.
As fanzines criadas por Mär não são grampeadas nem encadernadas; elas são dobradas e contêm tirinhas que foram publicadas entre 2022 e 2024. Já o livro “Mergulhado em Sonho” foi encadernado manualmente com uma técnica chamada “costura panfleto”, utilizando linha de nylon para evitar qualquer interferência nas imagens. Os desenhos originais foram realizados com aguada de nanquim, utilizando bico de pena e pincel, pois o nanquim proporciona uma abordagem mais orgânica e fluida, permitindo que as imagens surgissem de forma mais livre, como memórias de sonhos.
Resgatando Memórias
Marina Costa (Mär Cozta) é natural de São Paulo e criada em São Bernardo do Campo, chegou a Campo Grande em 2018 para cursar Artes Visuais. Sua trajetória acadêmica foi marcada pela absorção de influências de sua vivência pessoal, que se refletiram em sua arte. Em seu processo criativo, Mär revela um elo íntimo entre a arte e a jornada pessoal.
“Quando cheguei nessa etapa de conclusão de curso, fiquei muito tempo refletindo sobre toda minha trajetória. No começo do meu trabalho escrito, falo que, ao chegar em Campo Grande, comecei a me deparar com muitas adversidades de viver sozinha em uma cidade nunca antes visitada. Para não dizer que vim totalmente solitária, tinha comigo meus companheiros essenciais: meu caderno de desenhos e meus sonhos. E então, ao finalizar essa jornada, pensei: por que não falar do início, do que me trouxe até aqui?”.
Foi ao revisitar seus cadernos que ela notou a presença constante de uma temática: os relatos de sonhos, alguns fragmentados, outros mais completos. Com o apoio de sua orientadora, a artista Constança Lucas, Mär decidiu explorar ainda mais essa linha criativa e descobrir se seria possível transformar esses sonhos e desenhos em publicações.
“Eu me lembro que o primeiro impacto com a escultura de Louise Bourgeois foi a sua enorme dimensão, algo que me deixou impressionada e cheia de perguntas, como se a aranha estava viva ou morta. Ela estava exposta no MAM, no Parque Ibirapuera, e ficou marcada na minha infância. Passei a ter muitos sonhos com aranhas. Anos depois, decidi investigar o que era aquela aranha e comecei a conhecer mais sobre a artista. Foi quando percebi que a arte, de alguma forma, me pegou nessa teia e continua me devorando até hoje”, revela.
Mär acredita que a memória exerce um papel fundamental como fio condutor em seu processo criativo. Para ela, as lembranças funcionam como um mapa que revela os caminhos já percorridos e as imagens que ficaram gravadas ao longo do tempo.
“A partir dessa bagagem, sou capaz de mesclar o passado com o presente e até com futuros imaginários, muitas vezes carregados de fantasia. À medida que o tempo passa, essa distinção entre o real e o imaginário vai se tornando cada vez mais nebulosa”, explica.
Conceito das obras
Para Mär, o desenho permite que as imagens surjam e dominem seu campo de visão, percorrendo seu ambiente. O impacto emocional desse processo, segundo ela, está ligado à memória, principalmente ao relembrar momentos difíceis e marcantes de sua vida. Embora esses resgates emocionais tragam à tona temas interessantes para sua produção, Mär também reconhece o esgotamento de reviver constantemente certos passados.
“A memória tem uma influência direta na forma como as imagens surgem em meu trabalho. Quando tento resgatar e reconstruir um momento, a memória desempenha um papel fundamental, mas é a imaginação e a fantasia que completam as lacunas que a memória sozinha não consegue preencher. É nesse processo que os trabalhos começam a tomar forma”, afirma.
O conceito de “devaneios sem fim”, citado pelo filósofo Gaston Bachelard, ganha vida na prática artística de Mar. A citação do autor “imagens tão grandiosas marcam para sempre o inconsciente de quem as ama e suscitam devaneios sem fim”, ressoa profundamente em sua abordagem.
“Esses devaneios infinitos refletem uma paixão constante pelas imagens que me inspiram, um impulso que a mantém em um ciclo contínuo de criação. A busca incessante por novas formas de expressar esses devaneios é o que me motiva a produzir e a sonhar, levando-a a criar objetos e publicações, como os fanzines e o livro de artista”, conta.
Sua prática artística evoluiu à medida que ela passou a encarar os registros de seus sonhos e memórias com mais compromisso. O processo de escrever e desenhar, que antes era algo casual, se tornou essencial, especialmente depois que ela começou a enfrentar dificuldades causadas por medicamentos para tratar a depressão e a ansiedade, o que a fez perder muitas lembranças.
“Antes eu escrevia por acaso, mas com o tempo percebi a necessidade de me comprometer mais com esses registros. A arte passou a ser a forma de garantir que o que vivi e sonhei não se perdesse. Foi uma maneira de materializar a memória e o sonho”, reflete a artista. Para ela, a prática artística se tornou um meio de transformar suas vivências internas em algo tangível, mantendo a essência do que a moldou.
Serviço
As obras de Mar Cozta estão atualmente em exibição na GAV (Galeria de Artes Visuais) da UFMS, mas a artista não tem a intenção de comercializar as edições apresentadas. No entanto, ela planeja lançar novas versões da obra, com itens adicionais, e promete divulgar as novidades e a disponibilidade dessas edições em suas redes sociais (@mar.cozta), além das plataformas do Breu Coletivo (@breucoletivo), do qual é integrante. Os fanzines “Fragmentos de Sonhos”, uma das publicações resultantes de sua pesquisa, já estão à venda e podem ser adquiridas diretamente pelo coletivo.
Amanda Ferreira
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