Você já ouviu falar da Letônia? O gelado país europeu tem extensas florestas, é recém independente e conta com pouco mais de 1 milhão de habitantes – só a cidade de São Paulo tem mais de 11 milhões. Porém, desde 2024 o país entrou na mídia graças ao lançamento da animação ‘Flow’, que estreia no Brasil nesta quinta-feira (20). De forma despretensiosa, a obra conquistou o público e os críticos, e agora concorre aos Oscars de Melhor Filme de Animação e Melhor Filme Internacional, ao lado do brasileiro ‘Ainda Estou Aqui’.
Em Flow, vemos um mundo que parece ter chegado ao fim, coberto pelos vestígios da presença humana, mas sem eles por perto. O gatinho, um dos protagonistas, é um animal solitário, que um dia tem seu lar devastado por uma grande enchente. Para tentar sobreviver após a inundação, ele enfrenta diferentes ameaças até encontrar refúgio em um pequeno barco, que logo é povoado por outras espécies. Juntos, eles tentam sobreviver a um mundo hostil, se unindo apesar das diferenças, na tentativa de se adaptar ao cenário distópico. Flow acompanha uma aventura por entre as ruínas de um mundo inundado e destruído e os sobreviventes que buscam permanecer à deriva com a ajuda e esperança de cada um.
Simples, mas bem feito
Já no trailer vemos que, para os mais emotivos, o filme fará umas lágrimas caírem. Como ‘mãe de gato’ é possível ver o desespero do gatinho: a enchente, a perda do lugar que chamava de lar, o desespero de ficar ilhado, a chegada do barco com outros animais, os diversos perigos do mundo desconhecido. Mas, mesmo assim, a animação de Flow é de uma obra prima, que não vemos com frequência, principalmente na era da Pixar, Disney e inteligência artificial. “Se eu pudesse desejar o futuro da animação, estas imagens seriam um início magnífico e de tirar o fôlego”, disse o diretor Guillermo del Toro.
Com direção e roteiro de Gints Zilbalodis e roteiro de Matiss Kaza, o filme é uma joia rara na indústria cinematográfica. A produção teve um orçamento baixo para os padrões, custando cerca de US$ 3,7 milhões. Num comparativo, os dois filmes mais famosos que concorrem ao Oscar de Melhor Filme de Animação, ‘Robô Selvagem’ (da DreamWorks) e ‘Divertidamente 2’ (Disney/Pixar) tiveram o orçamento de US$ 78 milhões e US$ 200 milhões (!!!) respectivamente. Flow se torna quase um grito de esperança para os pequenos estúdios, longe da área ‘hollywoodiana’, mostrando que fora do eixo EUA-Europa também saem grandes produções.
Outro ponto de destaque foi que o diretor usou um software gratuito para criar a animação, o Blender, tornando o filme anda mais acessível e democrático. Ele teve apoio financeiro do Centro Nacional de Cinema da Letônia, da Fundação Capital Estatal da Cultura da Letônia, do Centre national du cinéma et de l’image animée, ARTE France, Eurimages, RTBF e do Belgian Tax Shelter. Ou seja, além da Letônia, foi uma coprodução da França e da Bélgica. Porém, apenas cinco pessoas tiveram envolvimento direto na finalização, incluindo o diretor.
Falando nele, Zilbalodis é um jovem letão de 29 anos, que ficou conhecido pelo primeiro longa-metragem ‘Away’, premiado em Annecy. Da mesma forma que Flow, a obra foi realizada usando o Blender e quase sozinho, tendo feito até a trilha sonora.
Em Flow, como não há mais humanos habitando a terra, também não há mais nenhuma voz, apenas os sons animais. O detalhe é que os sons eram de animais de verdade. No caso do gatinho protagonista, a voz foi registrada por meio do ronronar, miados e demais ‘manifestações sonoras’ de Miut, a gata do engenheiro de som do filme, Gurwal Coic-Gallas. Os sons dos demais personagens foram extraídos de animais do zoológico local.
“Usamos vozes de animais reais em Flow. Na maioria dos casos, isso não foi um problema, exceto para a capivara”, disse o diretor Gints Zilbalodis nas redes sociais. “Capivaras não falam muito, então era preciso fazer cóssegas para fazê-la dizer alguma coisa, mas a voz era muito aguda e não combinava com nosso personagem tranquilo e hippie. Tomamos uma decisão criativa de oferecer o papel a um bebê camelo”.
Prêmios
Flow já recebeu diversos prêmios desde sua estreia, como o New York Film Critics Circle Award, European Film Awards, Guadalajara Internacional Film Festival. Até então, seu ápice foi o de Melhor Animação no Globo de Ouro, logo, a expectativa para o Oscar 2025 é grande, mesmo com a grande concorrência, sendo Robô Selvagem o grande favorito. Mas é importante destacar que no ano passado, foi uma produção japonesa, ‘O Menino e a Garça’ que arrematou a estatueta, batendo ‘Homem-Aranha: Através do Aranhaverso’.
Críticas
Para Thiago Nolla, do portal CinePop, Flow é uma animação “irretocável” que explora o ser e a existência. “Percebemos que Flow não é apenas uma animação, e sim um arauto da mais pura renovação artística que traz uma profundidade mais e mais tocante do que aparenta”.
Natália Bocanera, do Coletivo Crítico, elenca Flow como uma “experiência navegante, intelectual e felina”.
“Flow é uma maravilha navegante e espiritual que, tal como os personagens que flutuam por águas tão envolventes quanto perigosas, nos guia e nos deixa levar pela fluidez desse mundo, evocando sentimentos e sensações puras, causadas por situações instintivas e personagens que guardam a mais genuína inocência. Lágrimas, sorriso no rosto e melancolia nesse amor tão grande em meio a um belo e aterrorizante caos”.
Elsa Fernandes-Santos, do espanhol El País, descreve o longa como uma espécie de arca de nóe, cativante e com destaque para a natureza.
“O filme destila uma observação profunda e cuidadosa do mundo animal e da natureza, mas sem abrir mão da própria fantasia. O gato protagonista é uma delícia expressiva que consegue levar a chamada “arte fofa” à sua própria dimensão”. A obra acumula impressionantes 97% de aprovação no Rotten Tomatoes, com mais de 100 críticas.
A ‘Fernanda Torres’ da Letônia
Não é sempre que vemos certos países nos circuitos cinematográficos e de premiações, e a Letônia é um deles. Com o Globo de Ouro em mão e indicação ao Oscar, a animação virou motivo de orgulho nacional no país: Flow é o primeiro filme da Letônia a ser indicado ao Oscar e o Globo de Ouro que ganhou já virou patrimônio nacional, e está exposto no Museu Nacional de Arte da Letônia, com um público de mais de 16 mil pessoas que esperaram horas na fila e no frio para verem de perto a conquista.
E não para por aí. Em uma parceria entre a prefeitura da cidade e Zilbalodis, foi erguida uma estátua do protagonista de Flow em Riga, capital da Letônia, feita em escultura 3D pelo artista Kristaps Andersons. Além disso, artistas passaram a espalhar a arte pelas ruas, com desenhos do personagem.
O filme também levou mais de 300 mil pessoas para os cinemas localmente, o que indica que mais de 15 % da população foi assistir ao projeto, sendo o maior público da história para um filme produzido na Letônia. Zilbalodis e outros profissionais envolvidos no projeto receberam uma honraria do governo e um prêmio em dinheiro, celebração que acontece apenas com medalhistas olímpicos e grandes personalidades. Ainda, o Ministério da Cultura da Letônia pensa em investir em mais produções do país, com planejamento de criar planos de investimentos em filmes, para levar essas produções para festivais internacionais.
Esse é o poder da arte! E viva aos gatos!
Por Carolina Rampi
Confira as redes sociais do Estado Online no Facebook e Instagram