CARNE VIVA acomtece na sexta-feira (12) e sábado (13) transformando relatos reais em dramaturgia
Quando a arte imita a vida, nem sempre os temas retratados são leves. Em 2025, Campo Grande ultrapassou os índices de feminicídio na capital, registrando 38 casos, sendo 24 deles em Campo Grande. O último caso foi reportado enquanto esta matéria era apurada: Angela Nayhara Guimarães Gugel, de 53 anos, foi morta a facadas pelo ex-marido, Leonir Gugel, de 59 anos, na manhã de segunda-feira (8), no bairro Taveirópolis.
É nesse contexto que estreia o espetáculo CARNE VIVA, criação da atriz e diretora Estefânia Bueno, na sexta-feira (12) e sábado (13) na Casa de Cultura, em Campo Grande (MS). A peça, que conta com a atuação de Estefânia ao lado de Madu Flores, surge de uma pesquisa cênica que transforma vivências reais de mulheres em dramaturgia, música e performance, oferecendo ao público uma experiência sensorial e reflexiva sobre dor, resistência e insurgência feminina.
O espetáculo nasceu do Projeto SOBREVIVER, que realizou um ato poético exclusivo para mulheres e dois ensaios abertos ao público feminino. Durante essas atividades, diversos relatos foram coletados, mostrando histórias de violência cotidiana enfrentadas por mulheres. Essas vozes se transformaram em dramaturgia, música e performance, dando forma ficcional a sentimentos que muitas vezes permanecem silenciados.
Vivências
A ideia de transformar relatos reais de mulheres vítimas de violência em arte surgiu da própria experiência de Estefânia Bueno como sobrevivente de feminicídio. Para o Jornal O Estado, ela conta que ao longo de anos, a diretora e atriz enfrentou violência psicológica, física e financeira dentro de seu casamento e precisou reconstruir sua vida após se separar, enfrentando depressão e síndrome do pânico.
Essa trajetória pessoal tornou Estefânia sensível às histórias de outras mulheres, transformando-a em uma espécie de “audição ativa” para amigas, familiares e colegas que também enfrentavam relações abusivas. Esse contato constante com a realidade das vítimas inspirou CARNE VIVA, cuja dramaturgia e montagem incorporam esses pesadelos vividos, convertendo-os em cenas poéticas e performativas que refletem tanto a dor quanto a resistência feminina.
“Surgiu da minha própria experiência, pois sou sobrevivente de feminicídio. Passei muitos anos de minha vida casada com alguém que praticava violência psicológica, física e financeira. Foi um processo muito lento conseguir sair dessa realidade, porque as mulheres são criadas para acreditar numa fantasia de amor e submissão”, relata Estefânia.
Ela complementa que, ao conseguir se separar, buscou apoio psiquiátrico e psicológico, enfrentou síndrome do pânico e depressão maior. “Durante esse período, ouvi ativamente outras mulheres e tentei ser um apoio para amigas que precisavam sair desses relacionamentos. Toda essa realidade, de uma amiga, vizinha, familiar ou colega de trabalho,acabou se transformando, de maneira poética, em linhas ficcionais para o teatro e a performance. E é um processo que ainda não terminou”.
Durante a convocatória pública, diversos testemunhos foram colhidos. Histórias duras, reais, que refletem a violência ainda cotidiana no país. “Os relatos reafirmam uma realidade difícil de ouvir e de ver. A cada semana novos nomes aparecem na mídia, e será que sabemos de todos eles? No sistema ainda dominado por homens, até a verdade corre o risco de ser escondida em uma gaveta”.
Sensibilizar
O espetáculo CARNE VIVA surge como uma obra de forte impacto social e transformador, destinada a sensibilizar o público sobre a violência cotidiana contra a mulher e fomentar debates urgentes sobre feminicídio.
Através da dramaturgia, música e performance, a peça convida homens e mulheres a refletirem sobre suas próprias experiências e atitudes frente à desigualdade de gênero. Mais do que uma experiência estética, CARNE VIVA busca estimular ações concretas, mostrando que a luta contra o machismo é coletiva e que a mudança depende da participação ativa de toda a sociedade.
“A proposta através da arte é sensibilizar tanto homens quanto mulheres a questionarem sua própria realidade dentro dessa violência diária. A arte gera mecanismos para o debate e desperta a vontade de mudar, de sair do lugar, de tomar decisões, de participar na construção de uma comunidade mais igualitária. Combater o machismo é uma luta de todos, pois é um mal que atinge a todos. É um mal-estar coletivo”.
Desenhos em cena
Para a reportagem, a atriz Madu Flores, que divide o palco com Estefânia Bueno em CARNE VIVA, transformar relatos reais de mulheres em performance foi um processo intenso e delicado. A encenação não busca apenas reproduzir a dor, mas convertê-la em movimento, texto e cena de forma que o público possa compreender a força e a resistência das histórias sem que se torne uma experiência apenas dolorosa.
A performance cria um espaço seguro para que essas vivências ganhem voz, permitindo que a memória das mulheres seja representada de maneira poética e sensível, sem apagar a intensidade da experiência.
“Bom, eu acho que não tem como não ferir ninguém. Para gente é bem doloroso. E, na verdade, transformar isso em texto, em desenho de cena, em movimento, é um jeito de expurgar, sem doer tanto, transformar numa outra coisa. Mas a dor acompanha. A gente aprende a conviver e aprender a transformar em cena, mas a dor não deixa de existir”.
A importância de CARNE VIVA vai além da cena artística: o espetáculo é um convite à reflexão sobre a violência contra a mulher e sobre a necessidade de mudança social. A atriz destaca que, ao levar essas histórias reais ao palco, a peça transforma dor em expressão, criando um espaço para que o público confronte a realidade de forma sensível e consciente. A encenação atua como um espelho da sociedade, expondo problemas cotidianos de maneira poética e crítica, sem deixar de impactar emocionalmente quem assiste.
“Infelizmente, acho que esta peça se encaixa muito neste momento, considerando o número de feminicídios, especialmente aqui no Estado. É também bastante irônico, como eu disse, porque conseguimos transformar essa dor de uma forma que não seja apenas o sofrimento que já sentimos, mas que ainda assim impacta e reflete na sociedade essas realidades tão duras. Se eu assistisse, provavelmente sentiria vergonha, raiva e tristeza ao mesmo tempo”, finaliza Madu.
Serviço: O espetáculo será apresentado nos dias 12 e 13 de dezembro na Casa de Cultura, localizada na Av. Afonso Pena, 2270. .Denúncia de violência contra a mulher: A Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180) é um serviço público essencial para receber denúncias e oferecer orientação no enfrentamento à violência contra mulheres.
Por Amanda Ferreira
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