Projeto Arte nas Estações estreia amanhã exposição que aborda cultura e ecologia do Brasil
A frase “Muita coisa importante falta nome”, dita por Riobaldo, personagem central de “Grande Sertão: Vereda”, de Guimarães Rosa, ecoa no contexto da violência que, ao contrário, se apresenta com muitos nomes e faces. A partir do dia 19 de dezembro, Campo Grande será cenário de uma reflexão visual sobre essa violência e suas múltiplas formas de expressão, na exposição “A Ferro e Fogo”, que reúne 113 obras de 27 artistas no Centro Cultural José Octávio Guizzo.
Com curadoria de Ulisses Carrilho e idealizada pelo colecionador Fabio Szwarcwald, a mostra encerra a itinerância do projeto Arte nas Estações e traz uma narrativa poderosa sobre resistência, cultura e ecologia no Brasil contemporâneo. A exposição, que ficará aberta até 19 de fevereiro de 2025, é um convite para refletir sobre o conceito de “povo” em um cenário de profundas disputas sociais e culturais. A entrada é gratuita, com funcionamento de terça a sábado, das 9h às 18h, e às quintas até as 20h.
Realizada com apoio da Lei Federal de Incentivo à Cultura e patrocínio master da Energisa, “A Ferro e Fogo” expande as fronteiras entre o passado e o presente, a arte popular e a crítica social. Durante o mês de janeiro, a exposição oferecerá uma programação educativa especial, com oficinas lúdicas e sensoriais para crianças, jovens e adultos, de terça a sábado, das 14h às 17h, incentivando uma relação mais próxima entre o público e as obras.
Violência curada pela arte
A exposição é uma narrativa visual sobre resistência, cultura e ecologia no Brasil contemporâneo, abordando o impacto humano no território e a resiliência cultural brasileira em um contexto de crises ambientais e disputas pela memória. A seleção das obras para a exposição privilegia um eixo temático que busca retratar a interação entre a natureza e o homem.
Em diversas telas, é possível perceber a presença de conflitos, que também marcam as narrativas dos museus históricos tradicionais. A violência, as lutas e as guerras fazem parte dessa história, marcada por momentos trágicos que, além de provocar a morte, resultam na perda de figuras importantes e de pessoas queridas, deixando um legado de dor e resistência.
Nas telas, é possível observar desde bois e carros até plantações e máquinas de colheita, refletindo a evolução de um Brasil que, historicamente, se valeu da natureza exuberante para seu progresso. No entanto, a exposição também questiona até que ponto esse uso da natureza tem limites, sugerindo a necessidade de um futuro mais responsável e consciente.
O curador Ulisses Carrilho afirmou, em entrevista à reportagem, que a ecologia se destaca como a principal pauta política no processo de revisão histórica da exposição. Ele ressaltou que a mostra não se limita a manifestações sertanejas e acadêmicas, mas também inclui a contribuição do grupo Hanai Tee do Povo Terena, que, durante a abertura, abordará temas como a insubordinação e a relação com os povos originários e a fauna.
“A arte, em sua essência, ultrapassa a política e se transforma em um acúmulo de tintas e belezas criadas por artistas, como na tela de Dalvan, que retrata uma árvore sendo sepultada com animais enlutados, uma cena que evoca uma reflexão sobre a solidariedade entre as espécies” destaca.
O título A Ferro e Fogo traz uma dupla referência, segundo o curador Ulisses Carrilho. Por um lado, remete à canção de Zezé di Camargo e Luciano, de 2000, que carrega uma carga emocional amorosa, com tintas de sofrência. O amor, assim como a política e a fé, é considerado um tema legítimo na exposição.
“Além disso, há a contribuição de Warren Vinning, que nos anos 1990 e 2000 estudou a devastação da Mata Atlântica brasileira e como o extrativismo colonial via o Brasil como uma fonte de recursos a ser explorada. Ao utilizar o título A Ferro e Fogo, estou me apropriando de uma metáfora — não apenas como uma expressão literal, mas também como uma forma de compreender e encarar a vida, refletindo sobre os processos históricos que moldaram nossa relação com os recursos naturais”, explica Ulisses.
Cultura do Sertão
A curadoria da exposição A Ferro e Fogo busca, além da arte visual, criar uma conexão profunda com a cultura local, e o sertanejo tem sido uma grande referência. Como curador, tenho encontrado uma força especial em apresentar essas exposições em Campo Grande, especialmente ao perceber a inteligência local em reconhecer a riqueza cultural do sertanejo. “Falar das nossas terras, da nossa memória rural, da lógica do campesinato e da relação com os animais e a terra é, sem dúvida, uma promessa de futuro”, afirma. Ele destaca que o sertanejo não é apenas um gênero musical, mas parte fundamental da história do Brasil, uma cultura que constrói o país.
O curador também ressalta a conexão com a literatura, especialmente com Guimarães Rosa, cuja obra Grande Sertão: Veredas traz uma linguagem complexa e filosófica, que o inspirou profundamente. “Sou apaixonado por Guimarães Rosa, sou um estudioso da literatura”, diz, lembrando que o autor foi um embaixador cultural do Brasil e um aliado das vítimas do nazismo.
Segundo Carrilho, Rosa, ao trabalhar com a linguagem popular, construiu um paradigma que une o sertão de Grande Sertão: Veredas com o sertão do sertanejo, criando uma ponte entre a alta cultura e o entretenimento popular. “Isso é algo que se ouve em uma vaquejada ou numa churrascada, e também nos interessa enquanto literatura”, conclui, refletindo sobre como as pinturas, muitas vezes consideradas menores, podem ser levadas a um novo patamar, assim como a literatura popular foi.
Arte do povo
Os espectadores que visitaram as exposições “Sofrência” e “Entre Céu e Terra” do projeto “Arte nas Estações” já ultrapassaram a marca de 4.970 pessoas, com 1.743 alunos participando das oficinas realizadas. Ao todo, 72 escolas estiveram envolvidas, e 97 professores foram capacitados para promover atividades educativas relacionadas às mostras.
A exposição segue as técnicas e linguagens da arte naïf, que, segundo a arte-educadora Olinda Soares, é caracterizada pela simplicidade e pela expressão de artistas autodidatas. Ela destaca que a arte naïf, originária do termo francês “naïf”, significa “ingênuo ou inocente”, e é reconhecida pela utilização de pinceladas simples e uma abundância de cores. “As obras são de fácil compreensão e identificação, permitindo que o público se veja nelas, pois retratam cenas do cotidiano, ritos populares ou religiosos. É uma arte sem amarras”, afirma Soares.
Allan Gabriel, de 21 anos, que visitou “Sofrência” compartilhou sua experiência: “Consegui captar as mensagens das obras e gostei bastante da dinâmica das oficinas. As pinturas são incríveis, e as oficinas são bem didáticas. Tirei muitos aprendizados e pretendo participar da nova edição de ‘A Ferro e Fogo’ no final do ano”.
A professora de educação inclusiva Aparecida de Fátima também destacou a importância das atividades. Ela participou das exposições com sua escola e observou o impacto positivo do contato dos alunos com a arte. “Acho essencial esse contato mais próximo com as artes, pois assim eles se desconectam um pouco dos celulares e têm a chance de refletir sobre a cultura de seu próprio país”, finaliza a educadora.
Serviço: A exposição estreia amanhã (19), quinta-feira, no Centro Cultural José Octávio Guizzo, localizado na Rua 26 de Agosto, n°453, às 19h. A entrada é gratuita com classificação livre.
Amanda Ferreira
Confira as redes sociais do O Estado Online no Facebook e Instagram