Ali também os mortos deitam sangue e recebem luto

Josemar de Campos Maciel - Foto: divulgação
Josemar de Campos Maciel - Foto: divulgação

“Diante de vós diviso dois caminhos”. Estamos nos despedindo de Lô Borges, co-fundador do Clube da Esquina, e esta despedida me recorda outros dois gigantes, Machado de Assis e Alphonse Daudet. Os três têm em comum, cada um em seu século, a lucidez de oferecer leituras da realidade a partir de fontes desafiadoras. Daudet, em especial, com “O homem do cérebro de ouro”, de “Cartas do meu moinho”, ajuda a refletir sobre os massacres cotidianos. Em homenagem a todos os Finados, vai este texto, que pode ser um fragmento encontrado nos bolsos de algum assassinado. As maiúsculas são poucas, indicando que poucas figuras na história merecem essa deferência gramatical.

“No Início”. A leitura de sua carta constrangeu-me, prezado padre “isentonius quinquênius”. Reconheço o tom lúgubre dos meus textos. Pensei em prometer-lhe uma história de entretenimento e devoção para seu deleite. Mas nem só de leite se vive; às vezes a vida empurra alimento sólido goela abaixo. De fato, neste instante, amontoa-se-me à consciência uma tal pilha de cadáveres que o meu coração anda fechado para coisa alegre, ai de mim. Assim sendo, tudo que lhe ofereço é a paródia, a parábola que passo a narrar, para que nos ajude a imaginar cenários. Conto com a sua magnânima benevolência, obviamente. Longe de mim desagradar à sua alta dignificência.

“A Parábola dos Mártires Sem Devotos”. Em um reino imenso e separado do nosso, apresentam-se problemas estruturais de segurança pública. O povo, cansado de bater-se, começa a se odiar. Cidadãos espertos contrataram outros mais pobres e os usam para tráfico de produtos estranhos. “Lelo operarius” é o rei, um monarca esclarecido que acredita na eleição dos reis. Ele crê ser possível desmontar estruturalmente o problema, que possui diversas camadas de sedimentação e teias de causas e consequências. Segundo ele, atacar as causas é o certo: educar as crianças antes que se tornem violentas, e buscar e punir os cidadãos mais ricos que financiam as armas usadas nos crimes.

No outro lado do espectro, padre, temos o mestre de província costra chacinoforus, governador da província de Águas de Março, que prefere resolver as coisas episodicamente, a partir das consequências. Dizem especialistas que ele almeja realizar grandes eventos com estardalhaço, atraindo a atenção de seu grande objeto de admiração: o rei donald, autointitulado o primeiro da casa de laranjas, que possui um grande exército. Consta que numa ação, costra sobe uma montanha de grandes conflitos, com sua guarda, passando a fio de espada 132 pessoas. Isso monta o palco do confronto severo entre dois modos de ler e estruturar respostas a problemas.

Qual o seu lado, padre? No primeiro cenário, para atacar o tema estruturalmente, assumiria a tarefa de intensificar leituras, aprofundar questões e terçar alianças com outros que acreditam que se trata de um jogo estrutural. No segundo cenário, para resolver o problema na força bruta, a tarefa é de armar-se, aprender técnicas de defesa baseadas em ataque. As ações de força bruta aumentariam a popularidade imediata, e talvez chamem para si a atenção do grande rei. Mas não se sabe se os parentes dos mortos e os bandidos ficariam quietos, e você poderia ser forçado a lidar com conflitos de proporções muito maiores.

Que lado você escolheria? Pois bem, da sua escolha talvez dependa a orientação do distante reino em direção a dois caminhos: o da política ou o da guerra em nome da paz. Os caminhos são simples, mas bem diferentes. Preparar-se para lutar por ideias e construir âmbitos de conhecimento que entendam melhor as causas dos fenômenos, ou preparar-se para uma série de imprevisíveis reações em cadeia motivadas por ataques sucessivos. Boa sorte na decisão. Ela terá peso e ajudará todas e todos a pensar sobre os fenômenos sociais e sobre a violência.
Nossa, que situação. Menos mal que é um país distante, caro padre. Mas ali também os mortos deitam sangue e recebem luto, simplesmente porque ali se ama a vida e a morte nunca é desejada. Ali, enfim, os cidadãos e as cidadãs decidem a gestão geral desses problemas através do mecanismo que chamam de voto. Interessante.

Eis prezado leitor, minha modesta homenagem a grandes intelectuais que aprenderam a gerir informação advinda de fontes contrastantes e em competição. A boa notícia é que essa tarefa de gestão nos espera, urgente, cada dia, em um tempo de muitos estímulos, muitas linguagens, em que precisamos conquistar tempo para refletir e tomar decisões informadas e adultas.
Josemar de Campos Maciel é Doutor em Psicologia (PUC-Campinas) e professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Local da UCDB. Email: [email protected].

Por Josemar de Campos Maciel

* Este artigo é resultado da parceria entre o Jornal O Estado de Mato Grosso do Sul e o FEFICH – Fórum Estadual de Filosofia e Ciências Humanas de MS.

 

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