(Re)pensar o trabalho: a escala 6×1 e o “fantasma” de uberização

Foto: divulgação
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A proposta de extinção da escala 6×1, encampada pelo movimento Vida Além do Trabalho (VAT), agitou as redes sociais, ganhou apoio na sociedade e chegou até o Congresso. Sem a pretensão de detalhar a proposta/movimento, gostaria refletir sobre o que eles representam no atual contexto, recorrendo a aportes da sociologia do trabalho e das ciências humanas em geral.

A grande movimentação gerada pela “PEC do fim da 6×1” já pode ser considerada um feito considerável, após décadas de flexibilização/desmonte da CLT e toda uma batalha ideológica e midiática para convencer a população que direitos trabalhistas são coisas do passado – e quem ainda os tem é “privilegiado”. “É preciso escolher entre ter emprego ou ter direitos”, dizem. O fato é que, especialmente após a reforma trabalhista e a lei da terceirização, um emprego registrado não significa proteção ou perspectiva futura. O resultado são ambientes corporativos marcados por pressão, sobrecarga, insegurança, frustração e suas repercussões negativas sobre a saúde de trabalhadores e trabalhadoras, que começam a sonhar com a possibilidade de trabalhar “sem patrão”.

No entanto, o sonho tende a virar pesadelo no “mundo sem CLT”: à velha informalidade, típica de economias “periféricas” como a nossa, soma-se a ultramoderna “uberização do trabalho” – uma realidade para muitas ocupações e um fantasma que ameaça outras tantas. Através dela, e sob um deturpado discurso empreendedor, uma multidão de trabalhadores é submetida ao obscuro gerenciamento algorítmico dos apps e se lança em longuíssimas jornadas – muitas vezes em escala 7×0 – para obter uma modesta renda, sem qualquer garantia. Tudo isso enquanto um bilionário das big techs acumula riquezas que o permitiria gastar um milhão de dólares por dia durante mais de mil anos!

Assim, completamos ¼ de século XXI com condições de trabalho que remetem ao capitalismo do XIX, mas com uma concentração de renda imensamente mais obscena. Os avanços tecnológicos, ao invés de amenizar o trabalho, ampliaram e complexificaram as possibilidades de sua exploração, com mecanismos que não sugam só o físico, consumindo principalmente a subjetividade do trabalhador. Daí temos, na era dos smartphones, uma avalanche de sofrimento psíquico, fruto das incertezas e da pressão pela produção a todo tempo e lugar.

A própria necessidade de um movimento para lembrar que deve existir “vida além do trabalho” demonstra o tamanho do problema. Evidentemente, o trabalho constitui uma atividade primordial na vida humana, mas se torna um fardo destrutivo quando não gera qualquer satisfação e não libera tempo sequer para a reposição mínima das energias – e os momentos da família, do lazer e mesmo do salutar ócio “inútil”?

Trabalhamos para viver ou vivemos para trabalhar? Não se trata de mero trocadilho retórico, mas uma provocação filosófica absolutamente necessária, presente desde a sociologia clássica. Um dos focos da tradição marxista foi justamente apontar que a produção capitalista privilegia o apetite insaciável da acumulação, deixando em segundo plano o atendimento das reais necessidades humanas. Mas mesmo Max Weber, avesso ao ideário socialista, reconhecia que o trabalho como “um fim em si mesmo” era algo completamente irracional e tinha se transformado numa “prisão de ferro”.

No fim dos anos 1960, juventudes pelo mundo atualizaram tal questionamento com o lema “não se deve perder a vida para ganhá-la”. Mas a resposta do sistema, em crise mundial, foi: “mais trabalho!”, com processos de precarização e mecanismos que exigem produtividade máxima e permanente, levando ao cenário narrado no início desta coluna.

Que o VAT e a pauta da 6×1 nos ajudem a repensar o trabalho e lutar por uma sociedade em que todas e todos trabalhem menos e com mais sentido. “Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome”!

Marcilio Rodrigues Lucas é Doutor em Ciências Sociais (Unicamp) e professor do curso de Ciências Sociais e do Programa de Pós-graduação em Sociologia da UFGD. E-mail: [email protected]

Este artigo é resultado da parceria entre o Jornal O Estado de Mato Grosso do Sul e o FEFICH – Fórum Estadual de Filosofia e Ciências Humanas de MS.

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