Há alguns dias, sentado com minha esposa diante da TV aberta, fui surpreendido por algo inesperado. Transmitiam o espetáculo de uma artista que, até então, era para mim apenas um nome: Lady Gaga. Não sou exatamente um apreciador do gênero pop, tampouco conhecia profundamente seu repertório. Mas naquela noite, o que vi ultrapassava qualquer rótulo musical. Diante da tela, presenciei um verdadeiro palco dionisíaco.
Esqueletos, caveiras, dançarinos e monstros compunham um cenário de combate simbólico pela liberdade de ser, sentir e existir. Entre coreografias e metáforas, Gaga conduziu mais de dois milhões de pessoas em Copacabana a um êxtase coletivo. Aquele momento me remeteu imediatamente a Nietzsche, filósofo que estudo há anos, quem talvez visse ali algo próximo do que chamou de “transvaloração de todos os valores”: a destruição do que oprime, para a criação do novo. Afinal, em um país marcado por tendências conservadoras, em um estado que elegeu o que há de mais macabro na política da ultradireita brasileira, o mar do Rio vibrou sob a pulsação dionisíaca de corpos livres e múltiplos, o avesso da norma repressora.
Mas para compreendermos isso é preciso ir mais fundo. Nietzsche propôs uma psicologia que não se limita à consciência. Ele nos fala de uma fisiopsicologia, em que o corpo e seus impulsos são o centro da criação de sentido. A embriaguez (Rausch), exaltada pelo filósofo, é o estado em que os instintos se afirmam e nos possibilitam superar o niilismo. O niilismo, para Nietzsche, é a sensação de que os valores supremos perderam seu sentido. O homem moderno, que já não crê em Deus, “sub ratione aeternitatis”, nem na razão, “sub specie absoluta”, vê-se perdido num mundo que é puro devir e que, por isso, parece sem valor.
Para suportar essa angústia, inventamos mundos suprassensíveis, como fizeram Platão e os cristãos, nos quais a verdade seria eterna e superior à vida sensível. Mas esses mundos, diz Nietzsche, são ilusões criadas por ressentimento: fruto da incapacidade de afirmar a vida tal como ela é: transitória, múltipla, trágica. Zaratustra, personagem central da filosofia tardia de Nietzsche, critica esses “trasmundanos”, criadores de além-mundos que rejeitam o corpo e a terra. O verdadeiro criador é aquele que diz “sim” à vida, mesmo diante do sofrimento, da morte, do abismo. Esse “sim” não é resignado, mas afirmativo e criativo. O artista, como Lady Gaga naquela noite, torna-se um sacerdote dionisíaco, que convoca o caos para fazer nascer novas formas de existência. Como afirma Nietzsche: “O artista trágico não é um pessimista – ele diz justamente Sim a tudo questionável e mesmo terrível, ele é dionisíaco…” (Crepúsculo dos Ídolos, 3, §6).
A Vontade de Potência, conceito central em sua filosofia, não diz respeito a um desejo de dominação, mas à capacidade de afirmar, transformar e criar valores. Como explica Deleuze, essa vontade se manifesta no corpo, no jogo das forças que o atravessam. O moralismo, a culpa, o ressentimento, frutos da “psicologia do sacerdote”, são formas de enfraquecer essa potência. A arte, nesse sentido, não é adorno, mas uma força de resistência contra a barbárie. Diante de um mundo que tenta normalizar o horror, da política à moral, precisamos mais do que nunca da embriaguez artística.
Portanto, embriagai-vos, como sugeriu o poeta Baudelaire. Não de fuga, mas de coragem. Não de mentiras celestes, mas de criação terrena. A arte, como queria Nietzsche, é o grande antídoto contra o niilismo. E às vezes, ela aparece onde menos esperamos: na TV aberta, num show pop, num palco tomado por monstros e caveiras, onde a vida, finalmente, se afirma.
Fabricio Santiago Almeida é doutor em filosofia pela UERJ, Professor Associado e Coordenador do Curso de Filosofia d UFMS. E-mail: [email protected]
Este artigo é resultado da parceria entre o Jornal O Estado de Mato Grosso do Sul e o FEFICH – Fórum Estadual de Filosofia e Ciências Humanas de MS.
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