Teko yma: A ancestralidade e os saberes dos ñanderu e das ñandesy na universidade

Fotos: divulgação
Fotos: divulgação

O III Seminário de Etnologia Guarani: Políticas e Territorialidades, realizado em maio na Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS) em parceria com a Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), teve como objetivo promover uma reflexão sobre a produção de conhecimento antropológico com indígenas Guarani de diversos países. O evento começou ao som dos “mborahei puku” (cantos longos), entoados pelos “ñanderu” e “ñandesy” (rezadores e rezadoras) na “ogusu” ou “óga pysy” (casa de reza). Para os Guarani, esses cantos inundaram desde o início o “teko” (modo de ser/viver), em uma temporalidade singular da manifestação do som do “ayvu, ñe’?” (palavra/alma), que, ao longo do tempo, permitiu que esses indígenas continuassem existindo. O seminário incluiu mesas, oficinas, grupos de trabalho e demais atividades com lideranças, rezadores, professores, pesquisadores e estudantes guarani e não indígenas. Destacaram-se as vozes potentes de mulheres guarani, que refletiram sobre o modo de vida a partir da cosmologia e cosmovisão guarani.

Embora realizado no espaço da universidade pública, as reflexões demonstraram que os povos indígenas ainda caminham por direções pouco acessadas pelos saberes acadêmicos, sobretudo no que se refere aos direitos dos povos indígenas. Espaços destinados a esse debate trouxeram à tona proposições que por vezes passam despercebidas pela sociedade dita “civilizada”. A realização de um evento internacional dessa magnitude permitiu que reflexões sobre modos de vida, percepções de tempo e o próprio ser/viver evidenciassem (ainda que timidamente) que os indígenas Guarani permanecem ancorados em suas cosmologias e cosmovisões. Em um “ára” (tempo/espaço) tão diverso, tentam (re)existir na temporalidade atual e, conforme fizeram seus ancestrais, impedir catástrofes apocalípticas por meio de seu modo de ser (teko), garantindo sua existência no presente. “Talvez nós, os povos Guarani, tenhamos respostas para diversos questionamentos sociais feitos na atualidade. Mas poucas são as pessoas que nos perguntam e poucos perguntas nos são feitas, e a cada dia que passa poucos de nós ainda permanecem…” (Pa’? Luiz Arce Tekoha Itaguasu)

É comum vermos eventos científicos focarem unicamente nos interesses dos conhecimentos considerados científicos ou acadêmicos (karai arandu). No entanto, neste evento Guarani ocorreu o contrário: os protagonistas e os interesses das reflexões foram os diversos grupos Guarani (Ava Guaraniguéra). E não foram apenas os pesquisadores indígenas que apresentaram seus saberes e reflexões; também participaram, como principais e mais importantes – como dizem os parentes nativos do Alto Rio Negro – os nossos “especialistas”: os “ñanderu” e as “ñandesy”. Dentro do “te’ýi” (coletivo) e do “tekoha” (aldeia), são eles e elas as fontes e guardiões das sabedorias sobre todas as coisas que existem neste mundo.

Essa valorização dos especialistas tradicionais é ainda mais significativa quando se considera o contexto histórico de reservamento vivido pelos povos indígenas. Os efeitos da colonização no sul de Mato Grosso do Sul foram extremamente cruéis, mas diversos coletivos Guarani e Kaiowá conseguiram resistir e sobreviver justamente a partir dos conhecimentos dos seus anciãos e conhecedores.

Segundo a antropóloga Seraguza (2022), o confinamento em reservas representou a destruição de um mundo anterior, e o tempo das reservas marca o início de uma nova era para os Guarani e Kaiowá em Mato Grosso do Sul. Entretanto, os efeitos de todos os “sarambiguéra” (esparramo) do século XX continuam presentes, com violências extremas tanto nas reservas quanto nas retomadas. Ainda assim, com o “ñembo’e” (canto) e o “ava reko” (modo de ser), cada coletivo segue resistindo, resignificando e refazendo seu caminho como um ser específico na terra.

Essa resistência também se manifesta no campo do conhecimento. As violências durante o confinamento compulsório atingiram diversos aspectos da vida indígena, e um dos mais impactados foi o saber nativo. Os Guarani vivem narrando histórias em suas relações cotidianas no “te’ýi” e no “tekoha”, e é nessas vivências que as crianças aprendem profundamente sobre todas as coisas que existem sobre e além da terra. Acreditamos que se aprende ali muito mais do que na escola da Prefeitura ou do Estado.

No evento, essa dinâmica esteve muito presente: a maioria dos participantes narrava histórias ligadas a determinado tema e a si mesmos, seguidas de reflexão. Isso ocorreu principalmente por parte dos “ñanderu” e das “ñandesy kuéra”, abordando assuntos como o “teko” (modo de ser), o “tekoha” (aldeia), o “ñe’?” (língua), a importância do “ñembo’e” (cantos), os problemas e as violências vivenciadas e entre outros temas relevantes para eles, sempre a partir de suas próprias perspectivas, sem intervenção externa.

No entanto, apesar da grande relevância desses saberes, ainda persiste uma concepção errônea entre os não indígenas – tanto no Mato Grosso do Sul quanto em outras regiões do Brasil – de que os conhecimentos indígenas são folclóricos, supersticiosos ou menos relevantes do que os saberes ditos acadêmicos. Em outras palavras, acredita-se que esses modos de conhecer deveriam ser evitados na ciência ou separados e rebaixados nas classificações do que se define como “verdade”. Muitos indígenas crescem ouvindo esse tipo de discurso sobre seus conhecimentos e, com o tempo, acabam sendo capturados por essa lógica, tratando os saberes dos outros como mais importantes, bonitos e perfeitos.

Esse processo de desprezo dos seus próprios jeitos de ser é uma das marcas profundas do confinamento e da colonialidade do saber. Sentimos até hoje os efeitos dessa imposição, sobretudo quando os próprios mundos indígenas são tratados pelos próprios indígenas como irrelevantes e atrasados, enquanto se adotam formas não indígenas como mais verdadeiras, civilizadas e modernas. Nesse sentido, o Seminário Internacional de Etnologia Guarani nos proporcionou outro olhar, mais próximo da visão e do modo indígena de pensar e estar no mundo. Muitos anciãos acreditam que apenas em contextos como este será possível libertar a juventude, que tem sido encantada pelas coisas do branco. Portanto, a cura para que se reconheça novamente o próprio conhecimento como um grande valor está na reaproximação com os nossos cientistas e professores tradicionais: os “ñanderu” e as “ñandesy”. Sem esse reencontro com as fontes originárias do saber, os jovens não conseguirão se libertar das coisas que obscurecem suas mentes (mbo akã pyt? ha kuéra).

Celuniel Aquino Valiente é Licenciado em Ciências Sociais pela UEMS(2016) e em Licenciatura Intercultural Indígena Teko Arandu pela UFGD (2021), Mestre em Antropologia pela UFGD (2019) e Doutorando em Antropologia Social pela USP. Professor da UEMS e pesquisador do Centro de Estudos Ameríndios (CEstA-USP). E-mail: [email protected]

Gileandro Barbosa Pedro é Professor da Faculdade Intercultural Indígena FAIND/UFGD, Graduado em Matemática pelo Centro Universitário da Grande Dourados (2009) e mestrado em História (2020, UFGD), Doutor em História pela UFGD (2025). E-mail: [email protected]

Este artigo é resultado da parceria entre o Jornal O Estado de Mato Grosso do Sul e o FEFICH – Fórum Estadual de Filosofia e Ciências Humanas de MS.

 

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