Manoel de Barros escreveu que “é preciso transver o mundo” e perguntou: “Pode o homem enriquecer a natureza com a sua incompletude?”. Transver o mundo é vê-lo a partir de outras perspectivas, até então ocultas ou mesmo marginalizadas, ver suas reentrâncias e entranhas, suas frestas e fendas, seus avessos, seus interiores, desvelando, trazendo à luz tudo o que permanece encoberto pela desconcertante obviedade com que a visão comum olha para a realidade, sem de fato enxergá-la. O que a filosofia faz, gosto de pensar, é isso. A partir de nossa incompletude, ver e rever o mundo e a nós mesmos, revelando sempre novas possibilidades de compreensão e de ação.
Mato Grosso do Sul possui extraordinária riqueza ecológica, ética, pluralidade de cosmovisões de diversas etnias e povos. Sua capital congrega brasileiros oriundos de todas as regiões do país, imigrantes japoneses, sírios, libaneses, árabes, forte presença paraguaia e boliviana, além de cidadãos de outros povos. A tendência para o intercâmbio cultural favorece a reflexão filosófica, ela própria filha do cosmopolitismo da antiga Jônia, onde viajantes de diversas partes do mundo travavam contato e comércio. Nesse cenário cosmopolita, em meio a um dos biomas mais ricos, plurais e encantadores do mundo – o Pantanal –, o Mato Grosso do Sul pode exportar bem mais do que commodities agrícolas. Podemos ser uma estufa, um celeiro de ideias, conhecimentos, cosmovisões, diversidade cultural e conhecimento científico.
Onde prospera a filosofia, viceja o pensamento investigativo e crítico, a cultura de pesquisa, a valorização da ciência e o duplo antídoto tão necessário em nossos tempos: uma postura cética e crítica tanto em relação ao negacionismo quanto em relação ao cientificismo. A filosofia em geral, e a filosofia da ciência em particular, são vitais para o Estado de Mato Grosso do Sul, para que aqui criemos uma cultura científica plural, capaz de enriquecer nossa visão de mundo e de nos oferecer um novo olhar para a realidade. Àqueles que consideram isso muito abstrato e clamam por resultados concretos é importante enfatizar que sem a criação de uma forte cultura de pensamento crítico e investigativo não dinamizamos e diversificamos o mundo do trabalho, as relações sociais, a produção de ideias e inovações teóricas e práticas, e, portanto, não oferecemos o devido combustível aos motores da infraestrutura econômica de nossa sociedade.
Eis o valor da filosofia da ciência para o Mato Grosso do Sul. Contribuir para que sua sociedade sul-mato-grossense, cada vez mais crítica e plural, realize todo o seu incrível potencial. Basta lembrar que nossa riqueza biológica, nossa exuberância natural e diversidade cultural vêm acompanhadas de uma missão e de uma possibilidade. Somos os herdeiros, os divulgadores, os filósofos da natureza e os aprendizes de uma vasta área do Pantanal, patrimônio material e imaterial da humanidade. Aqui está nosso dever e vocação. Aqui pulsa o nosso cosmos. De que maneira vamos preservá-lo e anunciá-lo ao mundo? Essa questão, por si mesma, bem como suas possíveis respostas, já constituem exercícios de reflexão filosófica.
Por Vinícius Carvalho da Silva, doutor em filosofia pela UERJ, professor do curso de filosofia da UFMS. É coordenador do Grupo de Pesquisa Physikós.