Há anos, uma longa discussão no mundo dos games tenta responder a seguinte pergunta: seriam videogames uma forma de arte? Quem argumenta que não costuma dizer que esse produto cultural pode até conter partes isoladas de elementos artísticos, como belas trilhas sonoras ou visuais cada vez mais inovadores, mas que não são, na sua totalidade, arte.
Lidar com essa pergunta implica em tentar definir o que é arte, tarefa com a qual intelectuais se ocupam há muito mais tempo do que videogames existem. Mas se contar uma história faz parte desse ideal, vale notar que a indústria passa por um amadurecimento, com games cujo enredo passa a ser parte cada vez mais importante no produto final, vide séries de jogos como “The Last of Us”, “A Plague Tale” e “The Witcher”.
Nessa linha, “God of War” é um perfeito exemplo dessa nova atitude. Os primeiros jogos, lançados nos anos 2000 para o PlayStation 2 e 3, eram games interessantes de ação, mas com uma história pouco memorável -a jornada do espartano Kratos em sua tentativa de destronar os deuses do Olimpo.
O reboot da franquia, em 2018, expandiu de forma surpreendente o horizonte da série, colocando Kratos no papel de um pai viúvo tentando se distanciar, sem sucesso, do seu passado violento enquanto passa pelo luto junto do filho Atreus -tudo isso no ambiente novo e hostil da mitologia nórdica. “God of War: Rangarök”, a continuação, que será lançada na próxima quarta-feira (9), se constrói sobre esse legado.
O game aprofunda ainda mais os temas com o qual tenta lidar, trazendo à tona discussões sobre a natureza da guerra, o preço da paz, as consequências do imperialismo e as dificuldades da relação pai e filho.
Aqui vale um aviso de spoilers para a trama do jogo anterior, “God of War”, de 2018.
Ao fim da história, descobrimos que Atreus, filho de Kratos com a giganta Laufey, na verdade se chama Loki, o deus nórdico da trapaça, um dos mais importantes do panteão, ao lado de Odin e Thor, que fazem suas primeiras aparições agora, em “Ragnarök”.
Se no jogo anterior esses dois deuses eram figuras distantes que jogavam longas sombras sobre os eventos da história, nesse eles aparecem na frente da narrativa, vividos de forma espetacular pelos atores Richard Schiff e Ryan Hurst, na versão em inglês, e Carlos Campanile e Gabriel Noya, na dublagem brasileira. São antagonistas ameaçadores e inteligentes, e ir contra eles depois de muitas alusões no primeiro jogo é emocionante.
Em termos gerais, a história continua desenvolvendo a interessante relação entre Kratos e Atreus, agora um adolescente em pleno estirão de crescimento, voz engrossando e fortes desejos de independência que o colocam em conflito com o pai -e têm efeitos cruciais no desenvolvimento da trama.
Nas viagens que fazem pelos Nove Reinos da mitologia nórdica, a dupla é confrontada com as consequências da dominação dos deuses Aesir, liderados por Odin, sobre os outros reinos. Logo no começo do jogo, Kratos e Atreus visitam Svartalfheim, a terra dos anões, e o game embarca em uma profunda reflexão sobre os efeitos que o colonialismo -imposto por Odin aos anões- deixa em uma sociedade.
Depois, ao passar por Alfheim, a terra dos elfos, são forçados a lidar com os limites do pacifismo como forma de resolução de conflitos -e, ao mesmo tempo, com a devastação e a violência cruel da guerra. São momentos em que “God of War: Ragnarök” brilha.
Em outros aspectos, o jogo evita mexer em time que está ganhando, e mantém grande parte das mecânicas do anterior, recompensando o jogador que explora, coleta recursos e persegue missões secundárias entre as principais. O combate não deixa a desejar, é brutal, eficiente e empolgante, ainda que não traga grandes diferenças em relação ao game anterior.
Os inimigos padrões também estão de volta, com algumas novidades, o que pode frustrar quem esperava mais variações, assim como sistema de nivelamento, que funciona através da compra de habilidades com pontos de experiência.
A diferença agora é que, quando se usa uma habilidade um determinado número de vezes, ela pode ser aprimorada. O resultado é um sistema que incentiva o jogador a desenvolver um estilo próprio de combate de acordo com as próprias preferências.
Vale pontuar ainda que “God of War: Ragnarök” faz excelente uso das capacidades do PlayStation 5, com carregamento quase instantâneo, gráficos impressionantes e integração detalhada com o controle, que vibra e emite sons de acordo com os movimentos diferentes que acontecem na tela. O preço para o mercado brasileiro, contudo, pode ser um pouco demais para um game com duração estimada de 40 a 50 horas.
Mas o forte do jogo está na narrativa. Ao acompanhar o amadurecimento de Atreus, que passa pela adolescência rodeado de incertezas, e de Kratos, que tenta fazer o melhor que pode para proteger o filho enquanto este toma as próprias decisões, percebemos como os videogames amadureceram também.
Mesmo no meio de combates épicos, magias e monstros, é fácil se identificar com os personagens principais e perceber que, se até os deuses erram, são mesquinhos, egoístas e rancorosos, mas também capazes de grandes atos de coragem, perdão e amor -quem somos nós pra fazer diferente?
Com informações da Folhapress, por VICTOR LACOMBE