Caso escancara falhas na proteção à mulher: em MS, agressor usa símbolo popular para perpetuar violência emocional, apesar de decisão judicial
Enquanto o “morango do amor” ganha as ruas de Campo Grande — em meio à alta da fruta na Ceasa e preços até 35% maiores —, um caso real revela como esse símbolo romântico pode ser deturpado e usado como instrumento de violência psicológica.
No mês em que a fruta enfeita vitrines, embala decorações e inspira gestos entre casais, um médico de Campo Grande, mesmo proibido de se aproximar da ex-mulher, encontrou um jeito simbólico de seguir com a intimidação: enviou o doce popular à ex-companheira, acompanhado de uma mensagem emocional e manipuladora. O presente foi entregue pela própria filha do casal.
O episódio ocorreu no último domingo, 27 de julho, e envolve o médico Carlos Nogueira (nome fictício), que responde por violência doméstica e está sob medidas protetivas, além de monitorado por tornozeleira eletrônica. Ainda assim, desrespeitou as ordens da Justiça.
Na mensagem enviada por WhatsApp, ele escreveu: “Mas te desejo tudo de melhor e mandei um morango do amor por vc pra te mostrar mesmo vc fazendo tudo isso, eu te desejo o melhor pra sua vida. Parabéns, conseguiu tudo q quis comigo”.
Para os advogados de Amanda Ribeiro (nome fictício), a atitude representa “violência psicológica disfarçada de romantismo” e expõe o uso da filha como intermediária para violar a medida de distanciamento.
A defesa da vítima já pediu a prisão preventiva do agressor. O caso tramita na 4ª Vara da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e escancara um problema recorrente: mesmo com tornozeleiras, medidas judiciais e acompanhamento processual, mulheres seguem vulneráveis a estratégias de assédio emocional por parte dos ex-companheiros.
Sete anos de violência e manipulação
O histórico do relacionamento entre Amanda e Carlos remonta a 2017. Após uma relação iniciada com flores e promessas — o chamado “bombardeio de amor” —, vieram o controle financeiro, as humilhações públicas, as proibições e a violência física. Quando Amanda se mudou para Campo Grande, já casada, perdeu sua autonomia econômica por pressão direta do marido, que dizia ser “vergonhoso” para a esposa de um médico trabalhar como secretária e “receber merrequinha”.
Foram sete anos de um ciclo de violência que terminou oficialmente em julho de 2024, com apoio da equipe da clínica Pronto Socorro do Amor. Mas, na prática, o fim nunca aconteceu. Carlos seguiu praticando agressões verbais, ameaças e humilhações, tanto por mensagens quanto pessoalmente, em ocasiões como a entrega das filhas.
Em um vídeo anexado ao processo, datado de 27 de maio de 2025, ele aparece descumprindo a medida judicial e se aproximando da residência da vítima com a decisão judicial impressa em mãos, como se o papel fosse escudo para sua conduta. A tática é antiga: quando ignorado, ele se mostra manso e arrependido; quando contrariado, parte para os ataques.
No dia 13 de julho, enviou mensagens pedindo perdão por traições passadas. Dias depois, passou à ofensiva emocional, entregando o “morango do amor” pela filha. A conduta, segundo a defesa da vítima, tem forte carga simbólica e manipulatória, típica de relações abusivas.
Impunidade disfarçada de controle
Mesmo com tornozeleira eletrônica e medidas protetivas deferidas judicialmente, Carlos segue violando as determinações com uma frequência que assusta. O processo registra ligações, mensagens, visitas indevidas e ameaças. Segundo a advogada da vítima, Janice Andrade, a situação revela “o grau de manipulação e desrespeito absoluto às decisões do Judiciário”.
“Não se trata mais de uma simples violação da medida. É uma escalada de violência com requintes de cinismo e teatralidade. O agressor usa até a própria filha como mensageira da importunação”, afirma a advogada em petição que pede a prisão preventiva do réu.
O Ministério Público de Mato Grosso do Sul (MPMS) solicitou a prisão preventiva de Carlos Nogueira (nome fictício), acusado de violência psicológica contra a ex-companheira, por descumprir medidas protetivas de urgência. Ele teria mantido contato com Amanda por mensagens de texto, desrespeitando as ordens judiciais de distanciamento.
No entanto, a Justiça indeferiu o pedido e determinou uma medida cautelar alternativa: o uso de tornozeleira eletrônica, conforme decisão proferida em 17 de junho de 2025. O juiz entendeu que o monitoramento eletrônico seria, naquele momento, suficiente para coibir novas violações e proteger a integridade da vítima.
Para Amanda, cada mensagem e cada tentativa de reaproximação representa uma ameaça renovada — física, emocional e psicológica.
Números em alta, proteção em baixa
O caso de Amanda não é exceção. Em 2024, Mato Grosso do Sul registrou 35 feminicídios — alta de 15,7% em relação a 2023 — e foi o 2º estado com maior taxa do país, com 2,4 casos por 100 mil mulheres, atrás apenas de Mato Grosso (2,5). Curiosamente, o número de agressões caiu: 2.367 casos de lesão corporal dolosa contra 2.837 em 2023, segundo dados nacionais.
O que explica esse paradoxo? Especialistas apontam que a subnotificação aumentou, enquanto a letalidade dos casos de violência doméstica segue crescendo. As mulheres estão morrendo mais, mesmo com menos denúncias formalizadas.
Além disso, 16.156 medidas protetivas de urgência foram registradas no estado em 2024 — e 2.283 foram descumpridas. O número indica que, em média, seis medidas são desrespeitadas por dia. O caso de Carlos, que ignora abertamente as restrições, é apenas uma das muitas faces dessa estatística.
Até onde vai a impunidade?
A história de Amanda, recheada de provas, vídeos, testemunhos e até tornozeleira eletrônica, mostra que a impunidade pode persistir até mesmo dentro do aparato legal mais completo. A cada dia em que o agressor anda livre, mesmo monitorado, envia doces, recados ou mensagens “emocionais”, ele reforça um sistema de violência camuflado em romantismo.
O “morango do amor”, doce que virou febre nas feiras da cidade, também virou arma. Usado como pretexto para invadir emocionalmente a vida da vítima, transforma o afeto em ameaça, o presente em ofensa. O agressor, que deveria estar afastado, se vale de gestos simbólicos para seguir presente.
Em um estado onde 64% dos feminicídios ocorrem dentro de casa, o Judiciário avalia o novo pedido de prisão e Amanda segue vivendo em alerta. Como tantas outras mulheres, resiste — mas já não deveria precisar.
Onde denunciar
Violência doméstica, mesmo quando disfarçada de gestos simbólicos ou mensagens emocionais, é crime e deve ser denunciada. Em casos de emergência, ligue para o 190. A Central de Atendimento à Mulher funciona 24 horas pelo número 180 ou pelo WhatsApp (61) 9610-0180.
Em Mato Grosso do Sul, denúncias também podem ser registradas online pelo site da Polícia Civil.
A Casa da Mulher Brasileira, em Campo Grande, atende presencialmente na Rua Brasília, s/n, Jardim Imá. O telefone de contato é (67) 3304-9400.
A Defensoria Pública de MS oferece apoio jurídico gratuito às vítimas de violência. O atendimento pode ser agendado pelo site ou pelo telefone (67) 3318-5600.
Por Suelen Morales