PEC de Nelsinho Trad ameaça criar mercado perigoso de venda de sangue

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Foto: Geraldo Magela/Agência Senado

Proposta foi aprovada na Comissão de Constituição e Justiça e vai para votação no Plenário do Senado 

A CCJ (Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania) do Senado aprovou, na quarta-feira (10), por 15 votos a 11, uma PEC (proposta de emenda à Constituição) que permite a comercialização do plasma sanguíneo. O texto libera coleta, processamento e venda do plasma no Brasil por empresas privadas. Esta parte líquida do sangue é utilizada em tratamentos, pesquisa e fabricação de medicamentos hemoderivados.

O Ministério da Saúde pressiona para barrar a proposta. A PEC ainda será avaliada pelo plenário do Senado e pela Câmara.

A PEC foi apresentada pelo senador Nelsinho Trad (PSD) no ano passado, motivada pelo desperdício de plasma nos laboratórios particulares do país. Estimativas da ABBS (Associação Brasileira de Bancos de Sangue) apontam que nos últimos cinco anos 65% do material produzido pelos bancos de sangue privados é descartado. Apenas cerca de 20% é usado em transfusões de sangue.

O jornal O Estado entrou em contato com a assessoria do senador Nelsinho Trad, para que ele se posicionasse diante da polêmica existente sobre a proposta. Porém, até o fechamento da edição não houve retorno.

A associação é favorável ao projeto. Em nota, disse que “vai dar destino ao plasma coletado, que hoje precisa ser descartado, e vai permitir a produção de hemoderivados em território nacional, criando condições de salvarmos para mais vidas”. “Tudo a preço de mercado; com parte dessa produção enviada ao SUS e teremos ainda valorização de um dos insumos mais raros do mundo”, continuou.

A possibilidade de pagar a doadores de sangue foi um dos temas de maior divergência entre os senadores. Relatora da proposta na CCJ, a senadora Daniella Ribeiro (PP-PB) afirma que o texto não prevê a remuneração. No entanto, as alterações no texto feitas pela relatora, que abriram a possibilidade de comercialização do plasma por hemorredes e laboratórios privados para outras empresas, até mesmo para lugares de fora do Brasil, levaram o governo e outras instituições de saúde a serem contrários à proposta.

Integrantes do governo e parlamentares que se opõem à proposta, porém, avaliam que a PEC abriria margem para esse tipo de pagamento. Isso porque o pagamento poderia ser incluído na lei que regulamentaria o processo de coleta e uso do plasma.

O relatório da PEC, aprovado pela comissão, afirma que uma lei “disporá sobre as condições e os requisitos para a coleta, o processamento e a comercialização de plasma humano pela iniciativa pública e pela iniciativa privada”.

O texto também diz que o plasma pode ser utilizado em laboratórios, no desenvolvimento de novas tecnologias e de produção de medicamentos “destinados a prover preferencialmente o SUS”.

Para ser aprovada, além de passar pelas comissões, uma PEC precisa de três quintos dos votos no Senado e na Câmara, em discussões de dois turnos.

Senadores declaram voto sobre a proposta 

Em voto separado, que recebeu apoio de parte dos governistas, o senador Marcelo Castro (MDB-PI) sugeriu liberar a participação do setor privado no processamento do plasma, desde que autorizado pelo Ministério da Saúde e para abastecer “de modo prioritário” o SUS. Esse texto não chegou a ser avaliado.

Criada em 2004, a Hemobrás recolhe o plasma excedente dos hemocentros, ou seja, que não é usado em transfusões, trata o produto e envia para o fracionamento. Essa última etapa, que serve para isolar componentes do plasma, hoje é feita em farmacêutica na Europa.

A PEC cita o desperdício de bolsas de plasma como justificativa para a mudança na Constituição. A estatal afirma que não há mais perda de plasma, pois o produto obtido das coletas feitas no Brasil voltou a ser fracionado no exterior.

Depois deste fracionamento, a estatal recebe os medicamentos de volta, como a imunoglobulina, e distribui para atender parte da demanda do SUS.

A discussão sobre a PEC ocorre no momento em que a saúde tem dificuldade de abastecer a rede pública com hemoderivados.

O Ministério da Saúde afirma que a estatal entrega 30% dos hemoderivados ofertados no SUS. O plano é produzir 80% destes produtos na Hemobrás em 2025, ano em que o governo espera concluir a fábrica da empresa.

Nos últimos anos, a saúde tem feito compras de mais de R$ 300 milhões por medicamentos não registrados pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), feitos com plasma estrangeiro.

Esse medicamento é utilizado no tratamento de diversas doenças, entre elas o HIV e imunodeficiências. Desde 2018, o governo acumula compras frustradas e disputas na Justiça e no TCU por causa da imunoglobulina.

O senador Marcelo Castro (MDB-PI) apresentou voto em separado, no entendimento de que se permita a comercialização dos hemoderivados, mas não a comercialização do sangue humano.

“Não se pode regredir socialmente. Se hoje nós permitimos a comercialização do sangue, qual argumento moral vamos ter para permitir a comercialização de um rim?”, questionou o senador.

A senadora Mara Gabrilli (PSD-SP) também disse que não é algo trivial no Brasil passar a incentivar o comércio de órgãos humanos, inclusive do plasma. Ela apelou pela não comercialização, mas pelo acesso mais célere aos medicamentos que os pacientes precisam. “O objetivo do comércio é lucro. Sangue é vida”, expôs a senadora Mara Gabrilli.

O senador Rogério Carvalho (PT-SE) lembrou que o Brasil é o maior transplantador do mundo “porque criamos um sistema eficiente e sério, com a lista nacional”.

“Ninguém é contra a criação de novas empresas processadoras de hemoderivados. Essa não é a questão. O que nós estamos discutindo aqui é a comercialização de órgãos (…) Na hora que se abre à comercialização vamos ferir de morte a assistência. Podemos, sim, aproveitar melhor todo o plasma em processamento no Brasil.”

Da mesma forma, o senador Humberto Costa (PTPE) disse que não é verdadeiro o argumento de que, se aprovada a PEC, “não se esteja liberando a coleta remunerada”. “Esse discurso de que estão preocupados com a autossuficiência não corresponde à verdade” – disse o senador, ao defender o trabalho desenvolvido pela Hemobrás (Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia).

As senadoras Zenaide Maia (PSD-RN) e Professora Dorinha Seabra (União- -TO) ratificaram a preocupação com a proposta e enfatizaram que o fato de a Hemobrás não conseguir atender toda a demanda não justifica a liberação da comercialização. “Não vamos permitir que o sangue seja uma commodity. Isso aqui é comercializar parte do corpo humano”, disse Zenaide.

Ministro Padilha 

Antes da votação, o ministro de Relações Institucionais, Alexandre Padilha (PT), disse que a proposta não tem como garantir o controle sanitário dos bancos de sangue nacional.

“É o verdadeiro vampirismo mercadológico, autorizar que empresas privadas suguem o sangue da população brasileira e transformem isso em produto a servendido, com o discurso de que, com essa venda, poderiam comprar produtos para tratar seus pacientes privados”, disse Padilha.

Hoje, apenas a estatal federal Hemobrás (Empresa Brasileira de Hemoderivados e Biotecnologia) está autorizada a usar o plasma coletado no Brasil para a produção de medicamentos.

O Ministério da Saúde argumenta que a venda do plasma pode reduzir a oferta nacional de hemoderivados, pois o produto feito com sangue coletado no Brasil poderia ser vendido no exterior.

Integrantes da equipe de Nísia Trindade ainda avaliam que acabar com a coleta voluntária pode tornar mais escasso o sangue disponível para casos que exijam, por exemplo, transfusões.

O texto dividiu a base do governo, recebendo apoio de senadores do PSD 

Foram favoráveis ao relatório de Daniella Ribeiro os senadores Marcos do Val (Podemos-ES), Plínio Valério (PSDB-AM), Efraim Filho (União-PB), Flávio Bolsonaro (PL-RJ), Carlos Portinho (PL-RJ), Rogério Marinho (PL-RN), Nelsinho Trad (PSD-MS), Angelo Coronel (PSD-BA), Otto Alencar (PSD-BA), Sérgio Petecão (PSD-AC), Lucas Barreto (PSD-AP) e Ciro Nogueira (PP-PI), Laércio Oliveira (PPSE) e Hiran (PP-RR).

Os votos contrários ao relatório foram dos senadores Eduardo Braga (MDB-AM), Renan Calheiros (MDB-AL), Marcelo Castro (MDB-PI), Weverton (PDT-MA), Alessandro Vieira (MDB-SE), Veneziano Vital do Rêgo (MDB- -PB), Professora Dorinha (União Brasil-TO), Magno Malta (PL-ES), Fabiano Contarato (PT-ES), Rogério Carvalho (PT-SE) e Augusta Brito (PT-CE).

Entidades como Fiocruz e Conselhos de Secretarias de Saúde se posionam contrárias 

Os conselhos de secretários de Saúde dos Estados (Conass) e municípios (Conasems), além da Fiocruz, também pedem a reprovação da PEC.

O Conselho Deliberativo da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) se posicionou contra a proposta de emenda à Constituição nº 10, de 2022, (PEC 10/2022), a chamada PEC do Plasma. Ela tramita na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado e tem por objetivo permitir que a iniciativa privada colete e processe o plasma humano.

Riscos

A Fiocruz disse que “a aprovação da PEC pode causar sérios riscos à Rede de Serviços Hemoterápicos do Brasil e ao Sistema Nacional de Sangue, Componentes e Hemoderivados. A comercialização de plasma pode trazer impacto negativo nas doações voluntárias de sangue, pois há estudos que sugerem que quando as doações são remuneradas, as pessoas podem ser menos propensas a doar por motivos altruístas”. Além disso, segundo a Fiocruz, esta prática traz riscos para a qualidade e segurança do plasma e pode aumentar as desigualdades sociais.

“Estudos sugerem, por exemplo, que a comercialização pode atrair pessoas em situações financeiras difíceis, dispostas a vender seu plasma, além de facilitar o acesso a pessoas que podem pagar, em detrimento daquelas que não têm condições”, acrescentou a fundação.

Hemosul

A Rede Hemosul MS declarou que, assim como todas as hemorredes do país, sem exceção, é contra o pagamento pelo plasma humano. O hemocentro afirma que a PEC traria insegurança aos pacientes, prejuízo ao desenvolvimento da indústria nacional e feriria a recomendação da OMS, que define sangue como doação voluntária e não remunerada.

Além disso, a possibilidade de omissão ou inverdades na triagem clínica aumentaria significativamente e o risco de contaminação dentro da janela imunológica (período não captado por exames) também.

“Somos a favor da doação voluntária e solidária com o único intuito de salvar vidas, com responsabilidade e consciência cidadã. A favor da autossuficiência da indústria nacional, questão perfeitamente possível e da distribuição única e gratuita dos hemoderivados pelo SUS”, afirma Marli Vavas, coordenadora da Rede Hemosul MS.

Em nota oficial, o Conassems (Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde) e Conass (Conselho Nacional de Secretários de Saúde) se posicionam totalmente contrários à PEC do Plasma.

“Tivemos conhecimento da reapresentação da PEC 10/2022 no Congresso Nacional. Se aprovada, esta PEC poderá provocar uma grande concorrência pelo plasma brasileiro e inviabilizar a Hemobrás, que se encontra em fase final de conclusão da fábrica de hemoderivados e inaugura a fábrica de Fator VIII recombinante já em outubro de 2023. Em resumo, além de já fornecer hemoderivados e Fator VIII recombinante para o SUS, a Hemobrás está se consolidando e gerando recursos para investimento próprio e dividendos para a União. O Conass e o Conasems reiteram sua manifestação contrária à PEC 10/2022 e declaram seu apoio irrestrito a Hemobrás, e sua defesa pelo SUS e a consolidação de suas políticas.” (Colaborou João Santana Fernandes).

Por –Alberto Gonçalves

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