“Ninguém acha que um negro é o médico”, diz um dos gastros mais atuantes de MS

Dia da Consciência Negra
Foto: Reprodução/Redes sociais
Hoje, 20 de novembro, é Dia da Consciência Negra, data que traz luz a questões importantes, como o racismo

A população de Mato Grosso do Sul é composta atualmente por 1,542 milhão de pessoas que se autodeclaram negras [pretos ou pardos], segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) colhidos em 2021. O órgão aponta ainda que cerca de 56% da população brasileira se autodeclara negra. 

A pesquisa de domicílios mostra ainda que em dez anos o aumento foi de 32% no número de brasileiros que se declaram pretos e quase 11% os que se declaram pardos. 

Mas, entre os mais ricos, os negros representam somente 17,8%. Um exemplo é a história do médico especializado em Cirurgia Geral em Mato Grosso do Sul, Dr. Márcio Eduardo de Souza Pereira, que é destaque em cirurgia minimamente invasiva da área gastrológica. 

Considerado um dos maiores médicos atuantes da gastroenterologista no Estado – estudo, diagnóstico e tratamento clínico de doenças do aparelho digestivo – o especialista contou ao O Estado sua trajetória na medicina. 

“A questão médica é bem difícil. Não é simples como toda criança surge falando ‘quero ser médico’. Eu me vi com o desejo dessa profissão um pouco mais tardio. Sempre gostei de ver procedimentos cirúrgicos. Então posso dizer que foi nessa fase da vida, quando eu via os cirurgiões e algum procedimento, isso me deixava encantado”, relembrou. 

Enfrentando os desafios da profissão, assim como outras pessoas, Dr. Márcio teve um desafio a mais para lidar: o racismo. Formado em uma Universidade Federal, o médico que veio de uma família humilde, de pais simples, lutou até alcançar os objetivos da vida profissional.

“A grande problemática de uma boa parte da minha vida foi a questão financeira. É quase impossível trabalhar e estudar medicina, mas precisei passar por isso e conciliar os dois por um período de três anos. À época eu não tinha carro, os livros eram caros, não tinha a internet como temos hoje, de fácil acesso que tudo você encontra dando um clique. Eram tempos difíceis, mas que nos traz saudade. Ficaram boas lembranças, mas nem tudo é perfeito”, destaca. 

Tornando as coisas mais complexas, para um futuro médico negro, o preconceito “camuflado” sempre existiu e foi enfrentado por Márcio. 

“Ninguém acha que um negro é o médico. Se tivermos duas pessoas, uma branca e uma negra com as mesmas vestimentas, o médico nunca será apontado como o negro. E como eu sei disso? Porque sou negro e médico. Infelizmente essa é a nossa realidade e já passei por muitas situações mascaradas”. 

“Já passei por muita situação como o paciente relatar o problema, ser atendido por mim, e no final agradecer, mas perguntar que horas o médico viria atendê-lo. O papel do médico negro do ambiente hospitalar é algo extraordinário. Estamos vivendo um momento muito exacerbado. A questão de racismo, sempre existiu e eu acredito que sempre existirá. Não será na nossa geração que vamos mudar isso, é algo muito enraizado nas pessoas, como uma questão cultural mesmo”, pontua. 

Para o médico gastro, a presença dos negros nas profissões simboliza a diversidade. “As pessoas precisam entender que os negros podem ocupar algumas posições, sem se preocupar se ele é negro, branco, pardo ou de outra raça. Se trata da competência da pessoa para tal cargo que lhe foi confiado. Então olha que bacana o negro nesse ambiente, olha que destaque e que desconstrução que causa. Quebra esse paradigma de estereotipar as pessoas e profissões”, reforça. Lutando contra as falas preconceituosas diariamente, o médico afirma que nunca ter vivido um preconceito direto, apesar das falas racistas embutidas na sociedade. 

“Nunca vivi um preconceito direto, do tipo ‘você é negro, ou não gosto de você porque é preto’, já presenciei, mas nunca foi contra mim. Mas todas as formas de racismo comigo foram veladas. De tom mais sutil, em forma de brincadeiras, alguma colocação desnecessária. Isso é, praticamente, diário e inevitável”. 

No cenário profissional, de acordo com sua visão são poucos os médicos negros, e também os que estão nas universidades. Desde a década de 90, os negros conquistaram, de pouco a pouco, espaço na sociedade e lugar de fala. Todavia, ainda há muito pelo que lutar e conquistar. 

“Desde que me formei, até os dias atuais, não vi melhora nesse cenário. É mínima a evolução, mas já colabora para as próximas gerações. O mundo ideal não existe, mas a cada ação e fala, pensadas antes de reproduzidas, já contribui para um mundo com menos preconceito, menos discriminação, e com isso, pessoas melhores, mais saudáveis e mais felizes”, declarou.

Dia da Consciência Negra é feriado em diversas cidades

O Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, foi instituído oficialmente pela Lei nº 12.519, de 10 de novembro de 2011. A data faz referência à morte de Zumbi, o então líder do Quilombo dos Palmares – situado entre os estados de Alagoas e Pernambuco, na Região Nordeste do Brasil. 

A data é muito significativa, pois traz à luz questões importantes, como o racismo e a desigualdade da sociedade brasileira. É uma data que relembra a luta dos africanos escravizados no passado e que reforça a importância da realização de novas lutas para tornar a nossa sociedade mais justa. 

Diante da necessidade da conscientização, o Dia da Consciência Negra pode se tornar feriado nacional. É o que propõe o Projeto de Lei do Senado 482/2017, de autoria do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP). O PLS foi aprovado pela Casa e seguiu para análise da Câmara dos Deputados. Em consulta pública realizada no site do Senado, maioria dos votantes apoiam a causa.

Entretanto, já existe legislação federal sancionada pela ex-presidente Dilma Rousseff (PT) – lei 12.519/2011 – instituindo feriado no País, mas apenas 1.260 municípios veem a data desta forma. Com a nova proposição, caso seja aprovada na Câmara e sancionada pelo presidente da República – o Dia da Consciência Negra será comemorado em todo território nacional.

Para mundo ideal sociedade precisa se posicionar

Trabalhando e desenvolvendo sobre a temática da igualdade racial, a titular da CPPIR (Coordenadoria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial de Campo Grande), Rosana Anunciação Franco, diz que é preciso posicionamento da sociedade perante o assunto para caminhar ao mundo ideal. 

“Precisamos garantir que as políticas públicas sejam de fato implementadas, porém não é somente isso, precisamos de um esforço, uma atenção coletiva da sociedade em torno deste tema, a princípio encarando o racismo de frente, aceitando que ele existe e que está impregnado em todas as estruturas sociais, fazendo com que as oportunidades não sejam iguais para todas as pessoas, criando estereótipos que marginalizam e invisibilizam o negro na sociedade”, afirma a coordenadora. Trazendo à tona sobre a lei Áurea, Rosana ainda afirma que há muito o que lutar pela causa. 

“Devemos ter em mente que a lei Áurea não garantiu direitos a população que passou mais de 300 anos sendo tratada pior que animal. Ainda há muita coisa a ser mudada, precisamos debater mais sobre este assunto, falar de valores, respeito, amor e empatia”, finalizou.

Racismo: muito presente nos dias de hoje

Ainda presente na sociedade, mesmo diante tantas campanhas e causas levantadas contra o racismo, crimes ocorrem em Mato Grosso do Sul e são investigados pela Polícia Civil. 

Em 2022, de janeiro até a primeira quinzena de novembro, o Estado teve 28 boletins de ocorrências registrados como crime de racismo, e 364 ocorrências de injúria racial. Prevista no código penal, a injúria racial é tipificada do artigo 140 no parágrafo 3º que se refere a ofender a dignidade ou decoro de alguém, se utilizando de elementos de raça, cor, etnia, religião, origem, ou condição da pessoa idosa, ou portadora de deficiência. 

De acordo com a delegada Fernanda Mendes, se a pessoa se utiliza para ofender esses elementos, ela comete a injúria racial, que é diferente do racismo. 

“A injúria racial tem pena de 1 a 3 anos de reclusão e multa. É ofender uma vítima, de forma individual. O racismo é um crime contra a coletividade. O racismo ele é tão grave, que ele tem lei própria desde o ano de 1989 – Lei 7.716/89. No ano anterior, a Constituição Federal de 88 deixou explícito o repúdio ao racismo no art. 4º parágrafo 8º”, destaca. 

Ainda de acordo com a delegada, o combate ao racismo é um princípio norteador das relações internacionais realizadas pelo Brasil. O artigo mais emblemático dessa lei [7.716] é o art. 20 que dispõe praticar, induzir, ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião (…), que também há pena de reclusão de 1 a 3 anos e multa. 

“Mas o que distingue uma injúria racial do racismo é muito simples: é um direito que foi impedido da pessoa. Normalmente é o direito de ir e vir. Se existe aquele preconceito impedindo de entrar no elevador, impedido de entrar no prédio, de prestar um serviço público, ou até mesmo de acessar o serviço público, por exemplo, por ser negro, branco, ruivo, pardo ou por ser de origem asiática, e esse direito de ir e vir foi tolhido, é crime de racismo”. 

“Importante destacar que o racismo é inafiançável e imprescritível, a qualquer tempo a vítima pode denunciar. Então diferente da injúria que é direcionada a uma pessoa, o racismo, o nosso Direito entendeu, que é um crime contra toda a sociedade e coletividade. Por isso a importância de ter previsão na Constituição o repúdio ao racismo e também existir a lei própria. Lembrando que tanto a injúria racial, quanto o racismo, é passível de prisão em flagrante e delito. E o racismo é inafiançável”, acrescenta. 

As denúncias podem ser feitas, de preferência, nas Depac/Centro (Delegacia de Pronto Atendimento Comunitário Centro), ou na delegacia mais próxima da área onde o crime foi cometido.

“Todas as delegacias podem registrar qualquer crime. É importante que a sociedade tenha consciência disso. As portas da Delegacia Civil estão aptas a qualquer crime. Mas as vezes se for registrar em uma delegacia especializada, esse B.O vai ser redirecionado. Por isso a preferência nas Depac ou nas delegacias de área. Mas todas estão aptas a registrar, e caso não seja de atribuição investigar aquele crime em específico, será feito o encaminhamento para quem tem essa atribuição”, finaliza.

Por Brenda Leitte – Jornal O Estado de MS.

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