“É ilusão achar que por ter fossa, você eliminou a contaminação”, afirma bióloga

(Foto: Marcos Maluf)
(Foto: Marcos Maluf)

Águas Guariroba garante que até 2029 município estará com 98% de coleta e tratamento de esgoto

Apesar de Campo Grande estar com uma cobertura de esgoto bem acima da média nacional, com 87%, enquanto no Brasil o percentual é de apenas 40%. Em alguns bairros, grande parte na periferia da Capital, a realidade da universalização do saneamento básico ainda parece distante. No Jardim Noroeste, um dos bairros que ainda não foi contemplado com a rede de esgoto, não é difícil se deparar com as chamadas “fossas negras”, um buraco sem nenhum tipo de revestimento, onde são jogados os dejetos da residência e que são um perigo iminente tanto para o meio ambiente, quanto para a saúde da população.

Segundo a Dra. Carolina Albuquerque Arroyo, especialista em clínica médica da Unimed Campo Grande, a contaminação por doenças decorrentes da falta se saneamento básico é muito maior, tanto pela ingesta de água e alimentos contaminados, como pela exposição a resíduos provenientes de esgotos que correm em céu aberto. “Sem dúvidas, a propagação de doenças é um dos impactos mais relevantes da falta de saneamento básico para a saúde. Em sua maioria, estão relacionadas ao contato com a água contaminada, pois a água não tratada é um importante veículo de disseminação de doenças. Entre as doenças mais comuns estão a esquistossomose, a dengue, a leptospirose, a giardíase e amebíase que são doenças parasitárias, a hepatite A e a cólera. Sim, a taxa de internação hospitalar e a mortalidade por diarréia é muito maior em regiões com pouco saneamento básico, e a parcela da população mais acometida são as crianças”, explica.

Já em relação ao meio ambiente a principal preocupação é com a contaminação do solo e da água. Segundo Edineia Lazarotto Formagini, Bióloga e Doutora em tecnologias ambientais, a adoção de fossas ocorre desde a Idade Média, quando sem alternativas, os resíduos eram jogados no meio das ruas. Ela destaca que as fossas ainda seguem sendo utilizadas, pois passam a falsa sensação de proteção. “Uma das primeiras ‘soluções’ pensadas foi a fossa negra, ou seja, uma fossa rudimentar, que nada mais é do que cavar um buraco próximo da residência e você fazer com que todo esse esgoto que antes saia livre nas ruas, agora ele vai ser direcionado para esse buraco. Você não está vendo, mas o nível de contaminação também acontece, porque nessa primeira camada de solo, a gente tem um lençol freático e ele está em movimento, então por mais que ele esteja enterrado, vai ter essa contaminação que vai sendo levada para todos os pontos. A contaminação chega, é ilusão a gente achar que porque você tem uma fossa, você eliminou a contaminação”, destaca.

fossa

“fossa negra” a céu aberto (Foto: Marcos Maluf)

Com o avanço dos estudos e da maior conscientização surgiram as fossas sépticas, que possuem um tanque de pré-tratamento antes da infiltração das águas no solo. Mesmo assim, não é possível mensurar o tamanho da área afetada pela utilização de fossas, já que depende de vários fatores, como o tipo de solo e a velocidade do lençol freático naquele local. “Comparado a fossa negra, é muito melhor, mas, ainda assim, eu não consigo eliminar todos os riscos biológicos. Diante disso, a gente entra no cenário da universalização do saneamento”, pontua.

Mesmo com o avanço em busca de melhores soluções e menores impactos, a especialista cita que é necessário avançar em alguns aspectos que ainda são um gargalo para a sociedade em relação ao saneamento. “A gente tem ligações clandestinas, ligações de águas de drenagem na tubulação de esgoto, que não devem acontecer, porque teoricamente, água de drenagem é água de chuva, ela não vai ter todos esses patógenos que tem no esgoto, e aí, por vezes, acaba tendo histórico e contamina o solo. Agrava isso com o fato de muitas residências ainda terem um poço para coleta de água, então você tem muitos poços que também estão contaminados. Às vezes a população não liga na rede coletora, porque tem um custo, você paga por essa ligação, vem na tarifa de água, vem a tarifa de coleta, tratamento de esgoto, então para não pagar este custo, a maioria das pessoas prefere não fazer a ligação, mesmo tendo a rede passando na frente da casa. Muitas vezes aliado ao custo, vem a falta de informação, que vem daquilo, eu não estou vendo, porque ele está embaixo da terra, então não é um problema, o problema só existe a partir do momento que eu vejo”, reforça.

Dias contados 

O percentual de 12% da população que ainda não conta com a coleta e tratamento do esgoto está com os dias contados. Isso porque, segundo a Águas Guariroba, a expectativa é que até o fim de 2029, Campo Grande esteja com 98% de cobertura, podendo se tornar a primeira do país com a universalização do saneamento, os trabalhos para a obtenção deste título são desenvolvidos em várias regiões da cidade. Em entrevista, Gabriel Martins Buim, diretor-executivo da Águas Guariroba, cita que 2023 deve ser fechado com aproximadamente 200 quilômetros de rede e mais de 20 mil ligações de esgoto. Considerando a taxa de ocupação de IBGE, que são 2,7 pessoas para cada domicílio, são mais de 60 mil pessoas beneficiadas durante este ano em Campo Grande, recebendo a rede de esgoto na sua casa.

12% da população que ainda não conta com a coleta e tratamento do esgoto está com os dias contados (Foto: Marcos Maluf)

“Os esgotos são infraestruturas mais complexas de serem feitas, estações de tratamento, depende corpo hídrico, são obras mais complexas de se fazerem. Se você tem, por exemplo, um povoado, um bairro menos adensado, mais distante, soluções para água são mais fáceis. Se for um poço, pequeno riacho, você faz uma captação, mas se você fizer uma estação, tratamento de esgoto, você não pode lançar esse flente em qualquer lugar. Então essa cobertura, ela geralmente é um pouco menor do que a cobertura de água. E mesmo assim, em Campo Grande, tem um contrato bem à frente do tempo no país, que a gente vem falando hoje, para chegar a 98% de cobertura”, reforça.

Áreas invadidas 

Campo Grande conta com, pelo menos, 20 áreas invadidas. Nessas áreas a situação é ainda mais complicada, uma vez que mesmo a Capital tendo 100% de distribuição de água tratada, por se tratar de uma comunidade irregular, a ligação da água é feita através do famoso “gato”.

Criança toma água diretamente de uma ligação irregular dentro da comunidade (Foto: Marcos Maluf)

Segundo a médica Carolina, para saúde, a situação dessa população demanda ainda mais atendimentos. “A contaminação por doenças decorrentes da falta se saneamento básico é muito maior, tanto pela ingesta de água e alimentos contaminados, como pela exposição a resíduos provenientes de esgotos que correm em céu aberto”, assegura.

Na comunidade do Mandela, no bairro Morada do Sossego, onde vivem 187 famílias, além da ligação irregular para tenham acesso à água, existe, ao menos, uma fossa ativa por barraco, ou seja, 187 “fossas negras”. Segundo a líder da comunidade, Greiciele Naiara Argilar Ferreira, 29, já tem família que está na sua quarta fossa. “Conforme chega no limite, a família vai fechando uma e abrindo outra”, disse.

Outra moradora de 32 anos que não quis se identificar alegou estar na segunda fossa. “Está fiz com três metros de profundidade para ver se dura mais tempo, isso que aqui jogamos apenas os dejetos do banheiro”, conta. Já em relação à água, os moradores garantem que ela não chega na torneira 100%. No caso da moradora que preferiu manter o anonimato, ela afirma que por conta da água estar contaminada, a filha mais nova reclama constantemente de dor na barriga. “Tem dia mesmo que a água sai parecendo borra de café, aí temos que largar a torneira aberta para termos acesso a uma água melhor, mas mesmo assim minha filha mesmo se queixa direto de dores na barriguinha”, relata.

A líder da comunidade reafirma a questão da água, inclusive, garante que foi obrigada a comprar um filtro há uns dois meses, depois que o filho de 6 anos ficou internado por conta da contaminação.

“As crianças aqui são afetadas diretamente por falta da água que, infelizmente, muito por conta das ligações, chegam contaminadas as nossas torneiras. Eu tive que comprar um filtro para tentar minimizar esse problema. Sem falar nas doenças de pele devido ao solo contaminado, porque na maioria a fossa é destinada apenas para o banheiro e o resto, como da pia, são despejados diretamente no terreno”, reitera.

O diretor-executivo da concessionária esclarece que eles só fornecem água para a área que é regular e que por muitas vezes, essas áreas invadidas usam de ligações irregulares. ” A gente até faz alguns projetos da retirada desses gatos, mas em uma ação muito forte institucional do Ministério Público, que o benefício da pessoa ter água vem antes do direito da concessionária poder cobrar pelo serviço ou a pessoa ter aquela casa regularizada. O que é ruim é que essas pessoas usam material de má qualidade, deixa vazando e ainda pode deixar uma contaminação ali”, alerta.

Contaminação cruzada e fiscalização 

Campo Grande não tem uma pesquisa que indique as regiões ou bairros que ainda possuem as fossas negras ou sépticas, contudo, Gisseli Giraldelli, superintendente de fiscalização e gestão ambiental da Semadur (Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano), ressalta que o uso destes meios para a eliminação de resíduos, impacta a toda a sociedade. Além disso, frisa que o morador que construir uma fossa negra pode estar se autocontaminando e contaminando outras pessoas. Porque a partir do momento em que essa contaminação tem contato com o lençol freático, o efeito será em conjunto.

“A gente tem alguns bairros sem rede coletora de esgoto. Nem todas as residências têm fossas negras. Então podemos dizer que tal região não é servida da rede de esgoto e as pessoas precisam encontrar uma alternativa, por isso, temos casas com o tanque séptico direitinho, com sumidouro e outros locais, com a fossa negra. Os impactos na saúde pública são imensos, pois a maioria das doenças infectocontagiosas tem relação com o saneamento, então a água é um bem precioso, nem todo mundo vai ter o contato só com a água da torneira tratada, por exemplo, não sabemos como foi a irrigação da alface que estamos servindo na mesa, que pode vir de uma captação de uma água de um córrego, de um poço, então pode haver essa contaminação cruzada. Temos situações de locais com poços clandestinos, existe a obrigatoriedade da água tratada, mas já tivemos casos de comércios consumindo água de poço, hotéis e isso acaba que com qualquer contato possam gerar doenças, temos crianças brincando num córrego. Então esse contato da água contaminada é muito prejudicial para a saúde humana”, alertou.

Crianças brincando em meio ao lixo às margens do Rio Anhanduí (Foto: Marcos Maluf)

Conforme a superintendente, a maior frente de atuação da Semadur está ligada a fiscalização e conscientização da população que já conta com o serviço de saneamento básico, mas que ainda não realizaram a correta conexão de sua residência ao sistema. Somente neste ano, mais de 6 mil vistorias já foram realizadas em Campo Grande, destas, 1.107 notificações foram emitidas e 425 autos de infração lavrados. Embora, a maior intenção seja a conscientização, caso o morador não se adéque conforme previsto na legislação, ele está sujeito ao pagamento de multa no valor de aproximadamente R$ 2 mil.

“No âmbito da superintendência, o programa Córrego limpo que não tem só a frente de controlar só a qualidade de água dos Córregos, mas também controla a ligação das redes de esgoto, entoa em todos os locais onde existe a rede de esgoto, a legislação prevê a conexão e isso é fiscalização. O artigo 61 da Lei 2909/92 diz que todos os imoveis com acesso à rede coletora de esgoto são obrigados a se conectar e usar. Então realizamos cerca de 600 vistorias por mês, aonde vamos ao local constatar a ligação na rede de esgoto e não se constatando a gente notifica a pessoa para que ela promova a regularização e se conecte na rede de esgoto e temos outra frente de fiscalização que é quando o local não tem a rede de esgoto, com denúncias de estravazamento, por exemplo, que ocorre quando a fossa não suporta essa quantidade de resíduos, então orientamos e constatamos para a destinação adequada. Mas a maior frente é a de fazer com que onde já exista a rede de esgoto, ela seja conectada”, destacou.

Por – Rafaela Alves e Michelly Perez

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