Brasil Sem Fome germina no campo

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Fotos: Marcos Maluf

Tendo agricultura como potência, plano do governo visa erradicar fome no Brasil até 2030

A esperança de tirar o Brasil do mapa obscuro da fome surge em um novo projeto. O governo federal lançou, no dia 31 de agosto, o plano Brasil Sem Fome, que visa erradicar a insegurança, alimentar e tirar diversas famílias da extrema pobreza, por meio de um projeto com mais de 80 ações, que incluem, dentre elas, um desenvolvimento mais assíduo e ativo na agricultura, que, em Mato Grosso do Sul, demonstra um papel mais do que positivo, em relação a esta temática.

De acordo com o plano, que entrou em vigor por meio da publicação, no Diário Oficial da União, no dia 1º de setembro, entre os objetivos essenciais está a redução do número de pessoas afetadas pela insegurança alimentar e nutricional, a redução da pobreza e a implementação de estratégias que auxiliem na erradicação da fome, a partir do ampliamento da produção e o acesso da população à alimentação adequada e saudável.

Dados divulgados pelo relatório “O Estado da Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo 2023”, da ONU (Organização Mundial das Nações Unidas), mostram que a fome global apresenta níveis elevados, na atualidade. A pesquisa revela que 783 milhões de pessoas no mundo enfrentaram situações de fome em 2022 e demonstra um aumento em 122 milhões de pessoas a mais do que antes da pandemia de covid-19.

De acordo com o levantamento feito pelo IJSN (Instituto Jones dos Santos Neves), em análise especial da Pobreza e Miséria nos Estados Brasileiros de 2022, é possível perceber números mais amenos em relação a Mato Grosso do Sul, diante do assunto. Se em 2021, o Estado assumia a 7ª posição no ranking de menor pobreza, com um percentual de 31,0%, em 2022, o percentual reduziu em oito pontos, alcançando 23,0% e colocando MS em 6º lugar na composição.

Se o campo e a agricultura têm muito a ver com os índices favoráveis, não é possível afirmar. Mas, que vários esforços estão sendo feitos para que a situação mude, é inegável. Um exemplo é a Cooplaf (Cooperativa de Leite da Agricultura Familiar), localizada em Terenos, a 31,2 km da Capital, que durante 3ª edição da Bienal dos Negócios da Agricultura Brasil Central, assinou um termo de cooperação com a ONU (Organização das Nações Unidas), para atingir os oito objetivos definidos pelo órgão internacional para mudar o mundo.

Um olhar pontual 

Em Mato Grosso do Sul, a cooperativa é a primeira a fazer parte do Movimento Nacional pela Cidadania e Solidariedade da ONU e por meio da produção, abrange seis municípios próximos, com a produção de leite, de hortifrúti e agora com a pecuária de corte, que é ponto-chave para alcançar os oito objetivos propostos pela ONU, que são: acabar com a fome e a miséria; educação básica de qualidade para todos; igualdade entre sexo e valorização da mulher; reduzir a mortalidade infantil; melhorar a saúde das gestantes; combater a Aids, a malária e outras doenças; qualidade de vida e respeito ao meio ambiente e todo mundo trabalhando pelo desenvolvimento.

A presidente do Conselho Administrativo, Maria Nelzira Cardoso da Silva Garcia, esclarece que hoje, a cooperativa busca, em parceria com diversos programas, trazer assistência técnica qualificada para uma produção mais eficiente e com ações diretas tem trazido diferenças pontuais. “Nós inserimos essa produção, uma parte, na merenda escolar do Estado de Mato Grosso do Sul. Atendemos as escolas do Estado com os produtos lácteos e também derivados, além do projeto da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento)”, explica.

No entanto, o projeto não transforma vidas somente por meio da doação direta de alimentos, pois a agricultura vai muito além e, por meio do ensino e do cultivo, muda- -se a realidade dos produtores, que, inclusive, saem do esquema de insegurança alimentar, por meio de sua produção e do suor do próprio trabalho. “A Cooplaf se preocupa com a comercialização dos produtores, para mudar o cenário da vida deles. Hoje, eles só se preocupam em seguir a instrução e a orientação do técnico, que é mensal. Recebem treinamento e capacitação e, todo mês, a cooperativa faz reuniões por núcleo. Com isso, estamos tendo um grande avanço aqui, no município de Terenos e também beneficiando e abençoando a vida de mais de trezentas famílias, que hoje recebem o retorno da produção e também sua renda, todo mês”, comemora a presidente.

Em MS, a iniciativa da Coopaf não é a única que se destaca. O Grupo Pereira, por exemplo, também é um dos que se unem no combate à fome. Por meio do programa Mesa Brasil, conduzido pelo Sesc, alimentos que seriam desperdiçados, são remanejados para famílias em situação de vulnerabilidade. Os parceiros, como as centrais de distribuição e abastecimento de alimentos, feiras livres, redes atacadistas e varejistas, e indústria alimentícia, doam excedentes de produção ou produtos fora dos padrões de comercialização, mas em condições seguras para consumo.

Na Capital, a Aguena Hortaliças representa uma dessas parcerias. O sócio-proprietário, Éder Aguena, explica que sua produção, localizada no cinturão verde de Campo Grande, conta com um sistema NFT (Nutrient Film Technique), hidroponia, e bancadas de areia e, que a temática da pobreza e da fome é tema relevante, em seu empreendimento. “Sempre foi e continuará sendo [importante]. Seja em grandes culturas, frutas e hortaliças, que é o nosso caso, essas cadeias de produção junto com a de proteína animal se completam, para oferecer alimentação equilibrada e assim poder diminuir a fome em nosso planeta”, argumenta.

Por meio do projeto Mesa Brasil, os produtores rurais se tornam essenciais para as doações, que chegam até a mesa das famílias do Jardim Canguru, onde está localizado um dos importantes projetos sociais desenvolvidos na Capital, o Instituto Maná do Céu para os Povos, que tem como principal objetivo ajudar crianças, jovens e famílias que moram nas periferias de Campo Grande.

Ao fazer o atendimento de pelo menos 120 crianças e adolescentes por mês – de 6 a 15 anos, com o serviço de convivência, fortalecimento de vínculos e ações focadas em grupos, é por meio da Feira Solidária que pelo menos 100 famílias veem o retorno da esperança, ao saber que na sexta-feira haverá o sabor de frutas, verduras e legumes, para afastar o gosto amargo da fome.

A assistente social que atende na instituição, Lilian Rosa Silva Nunes, acredita que, embora importante, as doações apenas atenuam o problema, mas não suprem as reais necessidades das pessoas em situação de vulnerabilidade social. “Não reduz. Redução? A gente não trabalha com essa realidade, porque a realidade aqui é cruel e elas [as doações] amenizam. Se a gente atende a uma família que tem uma criança, para ela pode ter suprido naquele momento, mas nem sempre a gente consegue atender com uma cesta básica, por exemplo. A gente não vive só de comida, queremos outras políticas funcionando e a efetividade de outras coisas. Eu creio que essa contribuição ameniza e contribui muito para o bem-estar da família, mas a gente precisa muito de subsídios para que isso aconteça mais vezes, a gente precisa de mais parceiros, mais empresários, que olhem para essa realidade e venham fazer um trabalho com as instituições das periferias”, apelou Nunes.

A fome devasta o corpo 

A nutricionista clínica e materno infantil, Tatiana Galiano, explica que a falta de ingestão de alimentos como frutas, verduras e vegetais, trazem diversos danos à saúde humana, pois são fontes de vitaminas, minerais e fibras. Nas crianças, por exemplo, os danos podem ser ainda maiores. “Essa deficiência pode ser um gatilho para o desenvolvimento de várias doenças, sem contar que vitaminas e minerais estão diretamente relacionados com o nosso sistema imunológico. Nas crianças, o olhar deve ser mais atento, pois o desenvolvimento físico e neurológico são dependentes desses micronutrientes. Afinal, nosso corpo funciona de forma sincronizada e quando falta algo e não ocorre essa sincronia, a saúde pode ser comprometida”, avalia a nutricionista.

A especialista e mestre em odontopediatria, Stella Toschi, 41 anos, explica que saúde bucal e nutrição estão sempre relacionados. “Deficiências proteicas durante o período pré-natal podem ocasionar alterações na cronologia de erupção, ou seja, no nascimento dos dentes, sem, contudo, alterar a composição mineral das estruturas dentárias. A falta de vitamina A provoca atrofia dos ameloblastos – células que formam o esmalte do dente e hipoplasia do esmalte, enquanto a deficiência de vitamina D afeta o processo de mineralização das estruturas dentais”, esclarece.

Segundo Toschi, a alimentação com frutas, verduras e legumes detém componentes estruturais que atuam diretamente na formação dos ossos e dentes. Por fim, os alimentos fibrosos como maçã, pera, melancia, kiwi, cenoura e pepino, contribuem para a limpeza dos dentes, ajudam a prevenir lesões e a manter uma boa saúde bucal.

Joana e o pé de feijão 

A coordenadora geral do instituto, Joana Gomes, 30 anos, faz parte do projeto há pelo menos quatro anos. Começou como oficineira e, durante sua trajetória, foi escalando os degraus até chegar ao cargo que ocupa hoje. Professora de educação física, com licenciatura e bacharelado, duas especializações, ela explica que o alimento ofertado na instituição é a base. “Temos esse cuidado, porque a gente sabe que muitos vêm e aqui se alimentam. Pode ser muito metódico a gente ficar falando, mas realmente é verdade. Muitos chegam aqui, no Maná, tanto matutino quanto vespertino e tem que ir direto lanchar, porque realmente não tem em casa. O pai avisa ‘fulana tá indo, ciclana tá indo’, porque realmente não tem”, lamenta a coordenadora.

Com uma história parecida com a das crianças e adolescentes que passam na instituição, Joana, além de muito querida pelos alunos, pois durante a entrevista é parada e cumprimentada pelos pequenos, demonstra ter local de fala quando o assunto é a dor da fome e, se emociona ao falar das crianças e de uma parte de seu passado. “Eu vim do lugar de vulnerabilidade, eu sei o que é crescer em ambiente de droga e crescer em um ambiente de muita dificuldade. Desde a época das oficinas, eu faço muito pensamento reflexivo com as crianças e trago muito da minha verdade. Eu sei o que é ter que passar dificuldade, eu sei o que é passar fome. Graças a Deus, tinha um pé de feijão atrás de casa e, por um bom tempo, a gente ficou comendo o feijão que tinha, o arroz que tinha, não tenho vergonha de falar pra eles e que sim, meu pai e minha mãe trabalhavam muito sempre, mas era muito difícil”, relembra.

Com uma história difícil e de constante superação, a professora demonstra, pelo exemplo, que dentro da instituição, além de um local seguro, é também onde as vulnerabilidades podem ser acolhidas. “Muitos têm abertura de chegar e me falar ‘pro, não tenho nada em casa, não sei mais o que eu faço’, e aí a gente entra com a assistência e vê o que temos no nosso estoque e fazemos ‘o que não pode’ por eles, porque eu sei o que é isso. Eu sou filha de cinco irmãos, a gente dormia na mesma cama, atravessados. Então, quando você entende um pouquinho do que é essa realidade, você tem propriedade para falar. A gente trabalha com escuta ativa, então eu posso fazer qualquer coisa, eles entram e falam ‘pro, preciso falar com você’, aí eles falam sobre questões adversas”, explica Joana.

A cozinheira do Instituto, Adriana de Souza Mota, 38 anos, chegou até a Maná do Céu para os Povos por meio da Cepa (Central de Execução de Penas Alternativas), para pagar por algo que tinha cometido. Na instituição há pelo menos três anos, ela diz ter se apaixonado pelas crianças e pelo que faz. “Pra mim, é gratificante, é um trabalho que eu já tinha feito antes, mas surgiu a oportunidade e é uma área que eu gosto, cozinhar. É gratificante fazer a comida para as crianças e ver o sorriso delas todos os dias. É gratificante pra mim, como pessoa, como ser humano, saber que por meio das minhas mãos as crianças são alimentadas. Crianças que às vezes vêm das suas casas e não têm nada lá pra comer. Aí lancha aqui de manhã, almoça, janta e voltam pras suas casas satisfeitas, daquilo que a gente serve aqui, tudo feito com muito amor”, comenta, alegre.

Necessidade, fome, miséria 

A voluntária na Feira Solidária e dona de casa, Silvane Gomes de Camargo, 37 anos, explica que para priorizar a criação dos filhos, optou por deixar o serviço que tinha como operadora de caixa de lado e explica que começou a auxiliar no projeto por influência de outras mulheres. “Ver o esforço das meninas [acendeu a vontade] e como eu tô parada em casa, desempregada, eu me senti disposta a ajudar e a contribuir dessa forma. Ajuda bastante, inclusive a mim mesma. Em casa, passei situações difíceis e [quando] vim e peguei a feirinha e me ajudou muito, muito mesmo. Então, assim como eu, com certeza outras pessoas também se sentem gratificadas”, diz Camargo.

Silvana tem quatro filhos, sendo um menino e três meninas. O mais velho, Brayan, atualmente tem 17 anos e foi o primeiro a ingressar no instituto. A partir dele, as portas se abriram para as irmãs mais novas, que hoje tem 13, 11 e 6 anos. Hoje, a principal renda da casa é o salário do marido de Silvana. “Graças a Deus o emprego estabilizou [a situação]. Mas, na pandemia, a gente passou por uma dificuldade e a ONG abraçou a gente, ajudou bastante, porque eles davam a cesta e ela ajudou muito mesmo. A gente não chegou a passar tanta fome assim, graças a Deus”, relembra.

Como pontua Silvana, cuidar da casa e das crianças foi uma opção viável, já que, constantemente, tinha que escolher entre a família, a casa e o serviço fora. “Devido a eu ter parado de trabalhar, a gente passou dificuldade e aí ficou muito difícil e muito dolorido ver as crianças pedir, querer e a gente não ter pra dar, naquele momento. Agora, graças a Deus, no momento, já está estabilizado”, argumenta.

A também dona de casa e cuidadora do lar, Teresa da Silva, 66 anos, explica que não tem condições de trabalhar por conta de Claudinha, sua filha com síndrome de Down. Antes de voltar seus cuidados à filha, Teresa atuava como doméstica em casas de família e hoje conta apenas com o salário do marido, que ainda não é o suficiente para fazer sumir a insegurança financeira e alimentar. “A feira aqui é uma benção, me ajuda muito. Vai chegando a sexta-feira, eu já venho pegar minha verdurinha”, diz, contente.

Durante a pandemia, as coisas ficaram um pouco mais difíceis e a fome passou a ser uma constante na vida da família. “Foi ruim, meu Deus! A gente passou necessidade, fome, miséria mesmo, em tudo. Aqui tinha pouca coisa, porque era muita gente e às vezes não dava pra todo mundo, então a gente passou necessidade”, relembra Teresa, que conta que o pior momento do dia, para ela, era o almoço. “Era na hora da comida, na hora do ‘armoço’, na hora da janta, que não tinha nada para comer”, lamenta.

Por Julisandy Ferreira – Jornal O Estado de Mato Grosso do Sul.

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