Atitute na difícil decisão de pedir ou revogar medida protetiva

Fotos: Valentin Manieri
Fotos: Valentin Manieri

Vítimas de violência contam com apoio de grupo criado pela 3ª Vara de Violência Doméstica e Familiar

Numa sala branca equipada com cadeiras lilases, mulheres se reúnem toda quinta-feira, a partir das 8h30, na Rua Brasília, no Jardim Imá, em Campo Grande. Cada uma tem histórias de violência física, psicológica, patrimonial, sexual, moral ou todas estas agressões juntas num único ser e que precisa romper este ciclo para pensar em novas atitudes.

O público que frequenta a sala é formado, em sua maioria, por mulheres vítimas de algum tipo de violência doméstica e nas quais um dia aflorou a coragem (ou por medo do pior) para denunciar seus agressores, mas que, por algum motivo, decidiram pedir a revogação da medida protetiva, que é um mecanismo judicial para manter o praticante de violência longe de sua vítima. Outras vão em busca de informações para resolver se vão ou não formalizar o pedido.

Desde 2018, funciona dentro da Casa da Mulher Brasileira o Atitude – Grupo Reflexivo de Mulheres, que foi pensado e implementado pela 3ª Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Campo Grande. Não tem fórmula para determinar o que cada uma das vítimas precisa optar quanto a prosseguir com a revogação da medida protetiva ou fazer este pedido. É respeitada a vontade de cada uma delas. Mas uma coisa é fato: todas chegam falando o mínimo do mínimo no encontro que as coloca dentro da sala de cadeiras lilases. Não existe maior ou menor dor para as profissionais de psicologia e assistência social, que conduzem a dinâmica do encontro. Algumas mulheres vão uma vez, outras repetem e outras preferem não ir.

O corpo fala e chega, muitas vezes, a gritar internamente quando começam as primeiras conversas entre a equipe que comanda a roda de conversa e as mulheres convidadas ou intimadas a participar de encontros do Atitude. São olhares murchos, vermelhos, aflitos ou vagos como se estivesse passando um filme pela cabeça. Mãos que ficam suadas, uma entrelaçada à outra.

A primeira dinâmica é movimentar o corpo para relaxamento, numa mistura de passos lentos que, aos poucos, vão ganhando velocidade. Passam por apresentação e é livre o desejo de contar ou não o que aconteceu e como elas têm se mantido em pé, apesar da dor física e/ou psicológica.

O Atitude – Grupo Reflexivo de Mulheres trabalha com performances que remetem à Agenda 2030, da ONU (Organização das Nações Unidas), que indica 17 ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) e 169 metas para erradicar a pobreza e promover vida digna para todos. O Objetivo 5 trata sobre o alcance da igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas.

A preocupação da Justiça do Estado de Mato Grosso do Sul, por meio da 3ª Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, é de romper um ciclo danoso, para construção necessária da independência, uma vez que a igualdade de gênero é transversal a toda a Agenda 2030, que prima pela paz universal, levando em consideração o desenvolvimento sustentável, no tripé social, econômico e ambiental.

Telma (nome fictício) é uma mulher que mora na região sul de Campo Grande e participou de reunião do Atitude. Ela pediu medida protetiva contra o esposo e decidiu reconsiderar 30 dias depois de se mudar para a casa da mãe e voltou a conviver maritalmente com ele. Ela nunca apanhou, não foi xingada ou ameaçada, mas resolveu dar um basta depois de anos de desgaste por conta do que ela rotula de comodismo do companheiro e ainda a interferência de parentes dele na relação dos dois.

A decisão de Telma em sair de casa, depois de 19 anos de casamento, e pedir medida protetiva foi porque o marido tem arma de fogo, utilizada legalmente em serviço. “Foi a reflexão de que se conhece melhor a pessoa depois que separa”, diz. A decisão dela, para muitos, pode parecer desnecessária ou precipitada, mas foi correta, tanto que a Justiça acatou o pedido.

Assistente social Angela Maria

Assistente social Angela Maria

Com os encontros do Atitude, as mulheres são sutilmente provocadas a começar a refletir sobre como é a sociedade. Telma “se viu” e concorda com a resposta unânime das outras mulheres que estiveram na dinâmica no mesmo dia que ela: o mundo é de muito machismo e tem, até, atitudes machistas de mulheres. Os direitos são iguais? Qual a função de cada membro da sua família? Sua casa tem cara de hotel, onde só você cuida e o restante faz uso e nem lava uma louça ou ajuda a dobrar e guardar as roupas de cama? São questionamentos para cada uma refletir.

A psicóloga Érika Jara e a assistente social Angela Maria Ribas de Souza são as responsáveis pelas ações de grupo dentro do Atitude e vão mesclando informações sobre tipos de violência, aquele “o que eu quero pra minha vida”, com bate-papo, momentos de relaxamento, e, aos poucos, todas as vítimas vão desenhando o próximo passo de suas vidas: prosseguir com pedido de revogação da protetiva ou fazer a solicitação. Que de tipo mulher vai voltar para casa?

É no fim do encontro que vem o específico para aquelas que mesmo com histórico de violência pensam em revogar a medida protetiva, porque já retomaram o que as profissionais chamam de lua de mel e vão dar um voto de confiança ao seu agressor. Sim, existe a volta de lua de mel que pode continuar assim ou ser só um artifício do homem ou da parceira de relacionamento homoafetivo para convencer sobre a volta.

PRIMEIRA VARA ESPECIALIZADA DO BRASIL É DE CAMPO GRANDE

Jacqueline Machado, juíza titular da 3ª Vara de Violência Doméstica Familiar de Campo Grande

Jacqueline Machado, juíza titular da 3ª Vara de Violência Doméstica Familiar de Campo Grande

As mulheres que participam dos encontros das quintas-feiras são encaminhadas pela 3ª Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Campo Grande, que fica dentro da Casa da Mulher Brasileira. Outro caminho é via Defensoria Pública. Vale ressaltar que é a primeira Vara do Brasil especializada em medidas protetivas.

A juíza titular da 3ª Vara de Violência Doméstica Familiar de Campo Grande, Jacqueline Machado, explica que o Atitude foi pensado e implementado depois que foi observado que estava muito grande a procura de mulheres com desejo de revogação da medida protetiva. “Ficávamos em dúvida se era por pressão, se essa mulher sabia o risco que corria, se entendia o que era o ciclo de violência, porque muitas entendem só como a sexual ou física, mas existem outras. Foi aí que, para que tivéssemos acesso a todas as informações de violência de gênero na modalidade doméstica e também informar as vítimas, veio o Atitude”, explica.

De acordo com a juíza, em 2018, 445 mulheres participaram no Atitude. Em 2019 aumentou para 683, outras 161 em 2020 e, até 12 de agosto deste ano, 30 mulheres já passaram pela dinâmica. “Esta vara trabalha com audiências de custódia dos agressores, análise das medidas protetivas e de tudo o que envolve a questão da proteção da mulher vítima de violência. O processo em si corre em outras varas que ficam no fórum”, explica.

Em tese, a mulher tem autonomia para pedir revogação da medida protetiva. Não tem como a Justiça impedir, porque ela é maior capaz, mas, pelo menos, se reatar vai ter todas as informações sobre como proceder no caso de nova violência e como criar um grupo em torno dela para proteger numa situação mais grave. “Muitas chegam aqui e decidem não mais revogar porque se reconhecem num ciclo. Ajudamos a enxergar e como proceder”, diz a magistrada.

Telma (nome fictício) saiu da reunião do Atitude com a mesma decisão com que entrou: prosseguir com o pedido de revogação da medida protetiva contra o marido. Ela sabe que está no ciclo da lua de mel da volta, mas afirma estar mais bem preparada psicologicamente para analisar o comportamento do marido, caso ele tenha feito apenas promessas para tê-la de volta em casa. “Amo meu marido. Sofri, ele sofreu e meus filhos, principalmente o mais velho, sofreram muito. Vou nos dar mais uma chance e para nossa família. Mas se eu ver (sic) que estava iludida, volto aqui, peço outra medida e me separo em definitivo”, diz.

IMPORTÂNCIA DA AUTONOMIA ECONÔMICA E SOCIAL

Uma realidade para muitas mulheres que vivem o ciclo da violência, mas ainda decidem conviver com o seu agressor, é a dependência econômica. Filhos que ainda não trabalham, dificuldade para encontrar creches para deixar as crianças e desemprego se tornam entraves na hora de romper, mas há caminhos públicos que podem ser acessados.

A subsecretária estadual da SPPM (Políticas Públicas para as Mulheres), Luciana Azambuja, destaca que mulheres em situação de violência precisam de apoios especializados, humanizados e de serviços qualificados para que se percebam vítimas da violência. Para que assim superem esse ciclo vivenciado já há muitos anos, na maioria das vezes, e também precisam se sentir protagonistas das suas vidas. De forma paralela a esse empoderamento da mulher para a superação da violência e para o exercício dos seus direitos, da sua cidadania, o governo do Estado, por meio da SPPM, criou o Programa Recomeçar, que oferece oficinas de qualificação profissional para que a mulher esteja mais qualificada para retornar ao mercado de trabalho.

“O Recomeçar visa também ao desenvolvimento das capacidades e habilidades socioemocionais para o crescimento da mulher. Então, a gente diz que autonomia econômica é uma das portas de saída do ciclo da violência, mas a gente quer também, além da autonomia econômica, a autonomia social da mulher”, destaca Luciana Azambuja.

CONHEÇA AS METAS DO OBJETIVO 5 DA AGENDA 2030

5.c  Adotar e fortalecer políticas sólidas e legislação aplicável para a promoção da igualdade de gênero e o empoderamento de todas as mulheres e meninas, em todos os níveis;

5.b Aumentar o uso de tecnologias de base, em particular as tecnologias de informação e comunicação, para promover o empoderamento das mulheres;

5.a Empreender reformas para dar às mulheres direitos iguais aos recursos econômicos, bem como o acesso a propriedade e controle sobre a terra e outras formas de propriedade, serviços financeiros, herança e os recursos naturais, de acordo com as leis nacionais;

5.6 Assegurar o acesso universal à saúde sexual e reprodutiva e os direitos reprodutivos, como acordado em conformidade com o Programa de Ação da Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento e com a Plataforma de Ação de Pequim e os documentos resultantes de suas conferências de revisão;

5.5 Garantir a participação plena e efetiva das mulheres e igualdade de oportunidades para a liderança em todos os níveis de tomada de decisão na vida política, econômica e pública;

5.4 Reconhecer e valorizar o trabalho de assistência e doméstico não remunerado, por meio da disponibilização de serviços públicos, infraestrutura e políticas de proteção social, bem como a promoção da responsabilidade compartilhada dentro do lar e da família, conforme os contextos nacionais;

5.3 Eliminar todas as práticas nocivas, como os casamentos prematuros, forçados e de crianças e mutilações genitais femininas;

5.2 Eliminar todas as formas de violência contra todas as mulheres e meninas nas esferas públicas e privadas, incluindo o tráfico e exploração sexual e de outros tipos;

5.1 Acabar com todas as formas de discriminação contra todas as mulheres e meninas em toda parte.

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(Texto: Bruno Arce e Eliane Ferreira)

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