Uma eleição sem precedentes. É nesse clima que 49 milhões de eleitores estão sendo convocados às urnas neste domingo (10) para escolher o próximo presidente da França. Vencedor há cinco anos, como uma lufada centrista no cenário político-partidário, Emmanuel Macron tenta a reeleição em uma disputa que começou com uma confortável vantagem, mas se tornou tão acirrada quanto incerta.
Pesquisa Ipsos divulgada na sexta (8) mostrou o presidente com 26,5% das intenções de voto, à frente de Marine Le Pen, da ultradireita, com 23%. A diferença entre os dois, que chegou a ser de 16 pontos percentuais, caiu em um mês para 3,5. Em terceiro lugar está Jean-Luc Mélenchon, da ultraesquerda, com 16,5%. Em um eventual segundo turno, Macron venceria Le Pen por 53% a 47%.
A margem estreita explica a subida de tom da reta final. No último dia de campanha oficial, enquanto Macron chamou Le Pen de racista, devido às medidas anti-imigração em seu programa, ela respondeu com “agressivo e exaltado”.
Mélenchon, por sua vez, comemorou apoios vindos da esquerda, como o da ex-pré-candidata Christiane Taubira. Ainda que tecnicamente ele tenha chances de ir à segunda rodada, seus eleitores são vistos como fundamentais para a mais provável disputa final entre Macron e Le Pen, no dia 24.
O pleito é considerado sem igual no histórico recente francês pelo contexto que o precede. Diferentemente das disputas anteriores, que durante meses ocupavam espaço no debate público, a eleição de agora foi ofuscada primeiro pela pandemia e nas últimas semanas pela guerra na Ucrânia.
Ao fim, os 12 postulantes não fizeram uma longa campanha. Principalmente Macron, que, ao buscar protagonismo nas tratativas diplomáticas no Leste Europeu, só confirmou sua candidatura um dia antes do prazo, no começo de março. O presidente não participou de nenhum debate frente a frente com adversários e realizou só um grande comício.
Se há um mês o papel no diálogo russo-ucraniano lhe rendia ganhos, hoje isso reforça a impressão de que ele é um governante palaciano, distante da realidade das pessoas.
Espremida entre manchetes sanitárias e bélicas, a campanha curta também leva a culpa pelo fraco debate de ideias –uma das razões, segundo analistas, da relativa apatia dos franceses.
“Não houve uma grande proposta que fizesse os eleitores pensarem no impacto em sua vida, algo positivo que possa resultar da eleição”, avalia Mathieu Gallard, diretor de pesquisas do instituto Ipsos. Ele lembra que, em 2017, dois temas mobilizaram os franceses: sair da União Europeia (proposta de Le Pen) e implantar uma renda básica universal (projeto socialista). As pesquisas indicam que a abstenção neste domingo pode ficar em torno de 28%, acima de cinco anos atrás (22,2%) e próxima da de 2002 (28,4%), a pior para um primeiro turno desde 1965. Na França, o voto não é obrigatório.
O desinteresse é maior entre os mais jovens e de menor renda, duas das faixas afetadas pela deterioração do poder de compra. De acordo com o Ipsos, para 56% dos eleitores esse é o tema mais importante para decidir o voto, à frente de ambiente e saúde (26% cada um), imigração e aposentadoria (24% cada um). “É a primeira vez, desde os anos 1970, que apenas um tema aparece tão isolado na preocupação dos franceses”, diz Gallard. Os outros assuntos também têm peso, mas dentro de nichos.
O tema remonta ainda a 2018, no contexto do movimento dos coletes amarelos –protestos de motoristas contra o aumento de impostos dos combustíveis que acabaram atraindo radicais à direita e à esquerda.
Em 2022, a preocupação voltou a ganhar força em razão do aumento no preço da energia e ficou mais evidente com a guerra. A inflação anual em março na França foi de 5,1%; há um ano, era de 1,6%.
Enquanto Le Pen levou o custo de vida para o centro da campanha, propondo baixar o imposto sobre gás, eletricidade e combustíveis de 20% para 5,5%, Macron não se aprofundou no tema. “Ele foi presidente na crise sanitária e na crise internacional, provavelmente pensou que bastaria se mostrar capaz de gerenciar grandes crises. A campanha não parecia estar muito bem preparada para esse tema”, diz Gallard.
Se o segundo turno mais provável se confirmar, a partir de segunda-feira o centrista e a ultradireitista vão intensificar a busca por votos à esquerda. Le Pen –que deve contar com os eleitores do ainda mais à direita Éric Zemmour, hoje com 9% nas pesquisas– afirmou a disposição de nomear integrantes de siglas do campo oposto em um eventual governo.
Já Macron encampou o discurso do medo contra a ultradireita e prometeu novas medidas para diminuir o impacto nos preços da energia, além de aumentar pensões. “O perigo extremista hoje é ainda maior do que há alguns meses, alguns anos”, disse ele, em seu único comício, no dia 2.
Por estranho que pareça, o cortejo à esquerda parece desconfortável para o presidente. Em primeiro lugar, retoricamente, já que, quando chegou ao Eliseu, em 2017, anunciou o início de uma era “ni de droite ni de gauche”, ou seja, nem de direita nem de esquerda. Na prática, porém, sua atuação é considerada de centro-direita, e ele viu o enfraquecimento da esquerda -a socialista Anne Hidalgo, prefeita de Paris, foi coadjuvante, com ínfimos 2% nas pesquisas.
Depois, porque há pontos de contato relevantes entre as campanhas de Le Pen e Mélenchon, como em relação à idade mínima da aposentadoria, hoje em 62 anos. Macron pretende esticar o corte até 65 anos, enquanto os rivais defendem baixar o limite para 60 (para algumas categorias, no caso dela, e para todos, no do esquerdista).
Outras convergências se dão em relação à guerra: os dois tiveram posições favoráveis a Vladimir Putin no passado e defendem a saída da França da Otan, num discurso contra o “globalismo” do presidente. “Não me diga que não podemos fazer sapatos, chapéus ou jeans aqui que não tenham viajado meio mundo”, disse o esquerdista, na terça, em comício simultâneo em 12 cidades, possível graças a hologramas.
“Se Macron quiser os votos da esquerda, tem que ir atrás. É responsabilidade dele convencer os eleitores. E um jeito de fazer isso é rever alguns temas, como a idade mínima da aposentadoria”, afirma à reportagem a eurodeputada Manon Aubry, partidária de Mélenchon no França Insubmissa e atuante em sua campanha.
Segundo o Ipsos, dos que declaram voto no esquerdista, 37% dizem que vão se abster num segundo turno entre Macron e Le Pen; outros 36% indicam preferir o atual presidente; e 27% escolheriam a ultradireitista.
Como Le Pen, Mélenchon disputa pela terceira vez a eleição presidencial. No segundo turno de 2017, ele não declarou voto em Macron –limitou-se a dizer que não votaria em Le Pen. Seu partido fez uma consulta interna, e a maioria dos filiados decidiu que o melhor era votar em branco ou nulo. Segundo Aubry, o processo deve se repetir neste ano.
“Os votos da esquerda e de Mélenchon serão o aspecto principal do segundo turno, e Macron realmente precisa melhorar sua posição entre esses eleitores”, diz Gallard. A estratégia do medo, porém, é vista com desconfiança. “Foi ele quem abriu caminho para a extrema direita, não a gente. Fomos os primeiros a mostrar que eles são um perigo para a sociedade”, afirma Aubry.
Professor de ciência política da Universidade de Nice, Vincent Martigny avalia que a campanha do medo que fez aglutinar a “frente republicana” contra Le Pen em 2017 pode não funcionar mais. “Agora que Macron não é mais um novato, há um sentimento de cansaço e hostilidade em relação a ele. Grande parte da opinião pública, especialmente à esquerda, o vê como um presidente arrogante, distante das pessoas, muito liberal e muito vertical em termos de poder. Alguém que vê a si próprio como um rei.” A coroa está em jogo.
Folhapress