Três trajetórias em MS mostram caminhos de referência, oportunidade, ascensão, identidade e representatividade
Há 101 anos, o Vasco enfrentava dirigentes que tentavam impedir a presença de atletas negros e operários em campo. A “Resposta Histórica”, de 1924, costuma ser tratada como um marco distante, mas ocorreu há pouco mais de um século em um país que viveu quase quatrocentos anos de escravidão. É um intervalo curto diante das desigualdades que persistem, inclusive no esporte, visíveis nos acessos limitados, nas leituras distorcidas sobre o corpo negro e na dificuldade de reconhecer que a população negra, hoje, é protagonista nas modalidades mais populares do país e do mundo.
Ainda assim, a excelência negra se afirma. No atletismo, no judô e em tantas outras modalidades, atletas de diferentes gerações constroem caminhos sólidos. Em Mato Grosso do Sul, três histórias ilustram esse movimento, com os judocas Elias Neto e Alexia Nascimento, além do fundista e atleta-guia Guilherme Ademilson. Cada um segue uma trajetória própria, mas todos se encontram na identidade, nas barreiras enfrentadas e nas referências negras que moldaram suas vidas dentro e fora do esporte.
Três trajetórias, um mesmo eixo

Foto: Divulgação
Guilherme Ademilson, 33 anos, nasceu em Petrópolis, no Rio de Janeiro, atua como atleta-guia de Yeltsin Jacques, e foi medalhista paralímpico em Paris e campeão mundial em 2025 nos 1.500m, ao lado do sul-mato-grossense. Começou no atletismo quase por acaso, em um projeto social de sua comunidade, e foi incentivado por seu primeiro treinador, José Roberto Pantaleão, que se tornou referência técnica e pessoal.
A família de Guilherme, especialmente seus pais, desempenhou papel central em sua formação, oferecendo suporte financeiro, emocional, orientações sobre escolhas de vida e consciência racial desde muito jovem. “Minha família é toda negra, isso sempre foi óbvio pra mim, essa identidade que carrego, mas nunca um empecilho.” Hoje, é inspiração para jovens atletas de todo o país. “O esporte me deu independência e dignidade. Agora tento devolver isso”.

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No judô, Alexia Vitória Nascimento, 23 anos, combina tradição familiar e dedicação ao esporte. Filha de Alessandro Nascimento, referência sul-mato-grossense na modalidade, começou cedo no tatame sob orientação do pai, acumulando experiência e medalhas desde as categorias de base, como o título de Campeã brasileira e o ouro nos Jogos Pan-Americanos de Santiago, em 2023.
Hoje, treina no Pinheiros, em São Paulo, onde encontrou mais estrutura, visibilidade e oportunidades de crescimento. Alexia afirma que nunca precisou procurar por modelos a seguir, pois dentro de casa, o pai foi a maior referência negra dentro e fora do esporte. “Entender que posso representar uma comunidade maior me traz responsabilidade mas muito orgulho.” Para ela, ser atleta uma mulher negra atleta significa ocupar espaços e abrir portas, mostrando que talento, inteligência e estratégia caminham juntos com força e resistência.
Entre os mais jovens, o campo-grandense Elias Rodrigues Neto, 18 anos, também iniciou cedo nas competições orientado por Alessandro Nascimento, e se destacou em torneios como o Campeonato Brasileiro Cadete até 73 kg, o vice-campeonato da Série Ouro dos Jogos Escolares Brasileiros em 2024, e o ouro no Campeonato Brasileiro Regional da mesma categoria.
Em outubro, mudou-se para Curitiba após o falecimento do Sensei que o acompanhou durante toda a carreira, onde trabalha sua transição da base para o profissional. Para Elias, a identidade negra se entrelaça com o compromisso de representar e inspirar a comunidade ao seu redor. “Quero mostrar que, independente da cor ou da classe social, é possível sonhar alto. Meu sensei sempre dizia: você é do tamanho do seu sonho. O judô me fez entender que posso alcançar lugares que eu nunca imaginei.”
Racismo, resistência e identidade
Apesar dos desafios, nenhum dos três coloca o racismo como eixo central da própria história, mas reconhecem que ele atravessa o caminho. Suas histórias lembram que a negritude não é um detalhe, mas sim um pilar de força, inspiração e transformação no esporte brasileiro e na sociedade.
O esporte não é apenas uma forma de competir, mas um espaço de afirmação da identidade negra. Cada um deles enfrentou, direta ou indiretamente, o peso de expectativas sociais e estereótipos, transformando desafios em combustível para crescer e inspirar outros jovens.
Alexia percebeu a dimensão de sua representatividade à medida que conquistava medalhas e ganhava visibilidade. Situações sutis de preconceito, comentários ou olhares, reforçam a necessidade de consciência e firmeza, lembrando que cada atleta carrega consigo não apenas seus sonhos, mas a inspiração para toda a comunidade.
Guilherme, entretanto, afirma nunca viveu episódios graves de racismo diretamente, mas reconhece que a consciência da negritude sempre esteve presente em sua vida. Desde cedo, em casa e na comunidade, aprendeu sobre limites, escolhas e perseverança. No atletismo, ele encontra referências em atletas africanos como o etíope Kenenisa Bekele e o queniano Eliud Kipchoge, entendendo que vencer também é um ato de resistência. Para ele, cada vitória e cada oportunidade de ser referência reforçam a importância da representatividade no esporte.

Foto: Divulgação
Elias já percebeu que seu papel vai além do tatame. Crescendo em uma comunidade periférica de Campo Grande, conviveu com histórias de colegas que tomaram caminhos difíceis. Sua trajetória se mistura à luta por igualdade e à valorização da identidade negra, reforçando que talento e raça não se dissociam, mas se complementam na construção de exemplos positivos, e vê em atletas como Rafaela Silva e Beatriz Souza referências de superação e identidade no judô.
A formação de cada um também passa pelas referências negras que tiveram. Para Alexia e Elias, essa figura é a mesma: Alessandro Nascimento. Crescer sob a liderança de um treinador negro ajudou a construir pertencimento e ampliar horizontes. Elias explica que quando percebeu que o sensei era referência para tanta gente, soube que podia sonhar grande também. Guilherme, que também teve um treinador negro como primeiro incentivo, afirma que a idetificação foi decisiva para continuar no atletismo. “Se não fosse aquele treinador, eu não teria sequer começado”, lembra.
Representatividade e futuro
A excelência negra no esporte brasileiro é continuidade, não exceção. Hoje, atletas negros lideram modalidades, acumulam títulos e inspiram gerações. Em uma enquete espontânea nas redes sociais, 69 pessoas responderam à pergunta: “Quando o assunto é esporte, qual primeiro atleta vem imediatamente à cabeça?”. Quase metade das citações, 33, era de atletas negros, especialmente, Rebeca Andrade, Vinicius Júnior e Neymar, com cinco menções cada, além de Raíssa Leal, Daiane dos Santos, Marta, Lewis Hamilton, entre outros.
É um retrato simples, mas revelador. A elite esportiva global tem cor e influência bem definidas. Guilherme resume: “Nos esportes mais populares do mundo, os negros são referências e protagonistas. Somos a melhor tenista, com Serena Williams, os melhores jogadores de basquete, com Michael Jordan e LeBron James, de futebol, com Pelé e Marta, as melhores ginástas, com Simone Biles e Rebeca Andrade. A negritude dominou o esporte de forma inabalável.”
Agora, eles próprios assumem esse papel de referência. Suas histórias reafirmam que representatividade é também compromisso com o futuro, e vencer não é apenas chegar ao pódio, mas abrir portas, inspirar e fortalecer a autoestima das próximas gerações, transformando conquistas individuais em legado coletivo.
Elias, Alexia e Guilherme fazem parte de uma mesma continuidade. O que une os três é a certeza de que o protagonismo negro no esporte brasileiro não é exceção, é fundamento. É resultado de referência, esforço coletivo e história.
Por Mellissa Ramos
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