Caso gera debate e o embate está longe de chegar a um consenso
Uma partida do campeonato amador de futebol feminino em Campo Grande terminou antes de começar no sábado (6). O time Leoas CG se recusou a jogar contra o Fênix por causa da presença da atleta trans Adriana Nogueira, de 24 anos. O episódio, ocorrido em um campo de terrão na Cohab, região sul da Capital, expôs argumentos recorrentes sobre suposta vantagem física e hormonal de jogadoras trans, mas também levantou discussões legais e esportivas sobre inclusão no futebol.
A partida entre Leoas e Fênix valia pela fase inicial do Super Campeonato Feminino de Futebol Amador. Minutos antes do apito inicial, a equipe Leoas anunciou que não entraria em campo, caso a atleta jogasse. “Antes, quando perguntava, diziam que ela não podia jogar porque não tinha documento. Agora ela tem documento legalizado e pode. Não estamos obrigando ninguém, só queremos espaço para ela no futebol feminino”, contou Solange de Jesus, técnica do Fênix.
A técnica e dona do Leoas CG, Bárbara Santana, afirmou que a decisão de não jogar não teve motivação transfóbica. “Nos inscrevemos em um campeonato anunciado como feminino, não ‘da diversidade’. Faltando cinco minutos, nos apresentaram uma nova regra, sem transparência. Não é justo colocar minhas atletas para disputar contra um homem biológico. O risco à integridade física delas é real, não concordamos em participar”, declarou.
A recusa gerou tumulto. “As Leoas saíram debochando. Foi constrangedor. Depois de tudo, a nossa atleta foi vítima de chacota nas redes e mais transfobia. Adriana está arrasada, sofrendo represálias e até ameaças”, afirmou Solange.
O organizador do campeonato, Antônio Bogarim, conhecido como Tony Gol, confirmou que tentou intermediar. “Quando as Leoas se recusaram, sugeri ao Fênix que deixassem ela de fora. O time não aceitou, disseram que ela tinha documento e direito a participar. As Leoas desistiram do campeonato e pediram o dinheiro da inscrição de volta”, relatou.
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O debate sobre força física
A justificativa de força voltou ao centro da discussão. Bárbara disse temer que a presença de Adriana aumentasse o risco de lesões. A técnica Solange contestou. “Eu, mulher cis, já causei e já sofri lesão em jogo contra outras mulheres. Isso faz parte do futebol. Adriana nunca machucou ninguém, pelo contrário, é cautelosa. No jogo que disputamos no último domingo (14), ela não cometeu nenhuma falta, o que é normal no esporte. Futebol não é UFC, para argumentarem sobre força”, disse.
O secretário do Ibrat/MS, Luan Henrique da Silva, também rebateu. “Uma jogadora sozinha não ganha campeonato. Futebol não é só força física, é domínio do esporte. Esse argumento não se sustenta.”
A legislação brasileira dá respaldo à participação de Adriana. Em 2019, o Supremo Tribunal Federal enquadrou a transfobia como crime equiparado ao racismo. Negar a uma mulher trans o direito de disputar uma competição pelo simples fato de sua identidade pode configurar discriminação.
Segundo Luan, a questão jurídica é clara: “Se fosse torneio organizado por federação, poderia haver exigência de exames hormonais, como já acontece em outros lugares. Mas em campeonato amador, sem regulamento específico, impedir a participação é discriminação, e cabe processo.”
Adriana também possui documento retificado, conquistado em processo judicial. “Não é apenas a troca do nome social. É uma retificação de gênero. Ela tem direito civil pleno à identidade e não pode ser barrada”, explicou o secretário.
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O que dizem COB e COI
O debate sobre inclusão de mulheres trans não é restrito ao terrão. No esporte olímpico, também está em disputa. O COI (Comitê Olímpico Internacional) mudou suas diretrizes em 2021. Desde então, orienta que nenhum atleta seja excluído apenas pela identidade de gênero, reconhecendo que não existem evidências científicas conclusivas de vantagem física automática. Cada federação define seus critérios. O Comitê Olímpico do Brasil (COB) adota a mesma linha. Não há regra de exclusão automática, e as federações têm autonomia para regulamentar.
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A realidade da base
Enquanto mulheres trans enfrentam exclusão, meninas cis são obrigadas a jogar com meninos no futebol de base. Em 2025, o Campeonato Sul-Mato-Grossense Sub-13 estreou como competição mista. Dos mais de 600 inscritos, apenas seis eram meninas. Elas jogaram lado a lado com os meninos, disputando posição de forma igual.
À época, em entrevista ao Jornal O Estado, o técnico do Grêmio Santo Antônio, Guilherme Teles, destacou que a escalação é por mérito. “Aqui não separamos por gênero. Treinam todos juntos, jogam juntos. Quem estiver melhor entra. Temos três meninas, e tem jogo que elas se saem melhor que muitos meninos”.
Este cenário é, também, argumento de Solange. “Se fosse como eles defendem, a gente não teria escolinhas de meninos que têm meninas treinando junto. Então, não vamos treinar as meninas junto com os meninos, porque, futuramente, vai haver um tipo de debate, já que pode ser que ali no meio dos meninos surja uma mulher trans que vai querer o seu espaço no futebol feminino, ou um menino trans que queira jogar no masculino, entende?”
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Cenário internacional
O debate também avança em outros países, muitas vezes com medidas de restrição. Nos Estados Unidos, o Comitê Olímpico e Paralímpico proibiu, em 2025, a participação de mulheres trans em categorias femininas, após ordem do presidente Donald Trump. Federações que descumprirem a regra podem perder verbas. A decisão gerou críticas de entidades de direitos humanos.
No Reino Unido, cresce a pressão por medidas semelhantes em competições escolares e amadoras. Algumas federações internacionais adotaram vetos, como atletismo, natação e ciclismo, que impedem a participação de mulheres trans que passaram pela puberdade masculina. Já a World Triathlon criou uma categoria aberta.
No Brasil, a CBV (Confederação Brasileira de Vôlei) impõe limites hormonais mais rígidos, mas mantém política de inclusão. Em 2025, Tifanny Abreu se tornou a primeira jogadora trans campeã da Superliga.
O caso de Adriana Nogueira em Campo Grande reflete uma discussão mundial. No terrão ou nas Olimpíadas, o que está em jogo não é apenas força ou hormônio, mas o direito de pertencer. “Não queremos impor nada. Queremos que Adriana tenha espaço para fazer o que ama: jogar futebol. Se nós, mulheres e LGBTs, não dermos esse espaço, ninguém vai dar”, resumiu Solange.
Por Mellissa Ramos
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