Por que ensinar idosos e idosas?

Leandro Mendonça Barbosa - 
Foto: arquivo pessoal
Leandro Mendonça Barbosa - Foto: arquivo pessoal

“Professor, nem a Bíblia eu lia!”. Esta frase me foi dita no final de 2019, dias antes da cerimônia de Colação de Grau que consagraria com o diploma do Ensino Fundamental II algumas dezenas de alunos/as que estavam fora do que se convencionou chamar de “idade escolar”. Sim, a padronização absurda que rege a educação também passa pela ideia de “idade correta” para estar na escola.

E este juízo é reproduzido na sociedade. Como alguém com mais de sessenta anos, então, ousaria fazer algo “incorreto”? Esta pessoa se sentiria acolhida? Será que ao poder público, cuja logica educação-empregabilidade-mercado é cada vez mais presente, convém matrículas de pessoas idosas? Se, desde a industrialização, que colocou em xeque a orientação humanista e cultural da instrução, como notou Antônio Gramsci em 1949, desenvolveu-se, para os pobres, uma escola tecnicista que crio um novo tipo de intelectual urbano para atender às necessidades do capital, por que ensinar “velhos”?

Sendo historicamente alijada do debate central sobre educação, a modalidade EJA – Educação de Jovens e Adultos – e suas complexidades são percebidas pela tendência neoliberal quase como um assistencialismo e um simples “resumão” dos Ensinos Fundamental I e II e Médio. O direito à instrução dos indivíduos que a integram é, assim, marginalizado. Os “antigos” se lembrarão do tom de voz usado quando se dizia que alguém “fez o supletivo”.

Durante a trajetória tanto na burocracia quanto no cotidiano escolar da EJA/SEMED-Campo Grande, afirmo que um dos públicos mais estimulantes – dentre os vários que são desafio – com os quais me deparo é o de pessoas 60+. A heterogeneidade que caracteriza esta modalidade de ensino torna-se maior em uma sala de aula frequentada por este público: o trabalhador que não conseguiu se aposentar e almeja um emprego melhor; a idosa que é vítima de violência doméstica, e tem nos momentos vividos na Escola ou na Igreja os únicos fora daquela realidade; o/a idoso/a que deseja ingressar no Ensino Superior; aquele/a que espera conseguir compreender a Bíblia, o/a que quer tirar a Carteira de Habilitação, o/a oriundo/a do ambiente rural ou ainda aqueles/as com necessidades especiais que não foram aceitos/as nas escolas em suas épocas de criança.

O ensino para pessoas 60+, então, vai na direção contrária do que ambiciona a lógica da educação mercantilizada. Ele não serve ao mercado. E não deve servir! A instrução de idosos é, antes de tudo, um direito humano: identificar uma linha de ônibus, não ser enganado no troco, ler seu livro sagrado sem depender unicamente da intepretação do sacerdote e até ocupar o banco de uma universidade extrapolam o educar; é dignidade e cidadania.

Ensinar a pessoa idosa é empoderar a coletividade, no sentido de que ela seja autônoma em sua completude e no que se apresenta tanto no cotidiano quanto no futuro – idosos/as em sala de aula pensam mais no futuro do que no passado, podem crer! – mesmo que o mercado não veja importância nesta “fatia” da sociedade. O/a idoso/a, quando acolhido/a, não se sente obrigado/a a este futuro que se impõe, o da mão-de-obra barata.

Ele/Ela conta com a magnífica liberdade de buscar a educação para o que quiser, ser o que quiser e estar onde quiser. Como a exclamação de minha ex-aluna, a vitória esteve em ler seu livro sagrado, que nunca conseguiu. Isto, para ela, é ser bem-sucedida. E a educação permitiu. Enquanto o ato de educar idosos existir, haverá resistência ao consequente tecnicismo do ensino!

Leandro Mendonça Barbosa. Doutor em História (Universidade de Lisboa) e Pós-Doutor em Estudos Culturais (UFMS). Docente da Educação de Jovens e Adultos/SEMED/Campo Grande. E-mail: [email protected]

Este artigo é resultado da parceria entre o Jornal O Estado de Mato Grosso do Sul e o FEFICH – Fórum Estadual de Filosofia e Ciências Humanas de MS.

 

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