Professor de Direito confirma que “uma denúncia com agressão física permite que a autoridade policial tome uma atitude mais drástica”
O feminicídio de Vanessa Ricarte levantou questionamentos sobre os sinais que podem ter indicado que ela estava em perigo. A vítima, que morava no bairro São Francisco há cerca de dois anos, foi assassinada dentro de casa pelo companheiro, o músico Caio Nascimento, que foi preso em flagrante.
A reportagem do Jornal O Estado esteve na manhã de ontem (14), no bairro e conversou com vizinhos que relataram ter percebido quenas últimas semanas antes do crime, houve uma mudança no comportamento dentro da residência. A música, sempre alta, se tornou constante, especialmente à noite, o que levanta suspeitas de que a vítima já poderia estar sendo agredida antes do assassinato, sem que ninguém percebesse.
Uma das moradoras que vive próximo à residência de Vanessa contou que a música alta pode ter sido uma estratégia para impedir que os vizinhos ouvissem brigas ou agressões que poderiam já estar acontecendo antes do crime. “Ele tocava muita música de noite, e começou a ser mais constante agora nesses últimos tempos. A gente nem pensava que podia ser isso, mas agora faz sentido. Talvez ela já estivesse sofrendo e, com a música, ninguém conseguia ouvir nada”, comentou.
Segundo especialistas, esse comportamento é comum em casos de violência doméstica, onde o agressor pode tentar isolar a vítima e impedir que terceiros percebam a situação.
O crime aconteceu na tarde de quarta-feira (12) e foi presenciado por um vizinho, que ouviu gritos e tentou intervir. “Escutei um berreiro. ‘Socorro, chama a polícia!’ Eu fui ver e vi o cara batendo na janela, querendo entrar. Comecei a esmurrar o portão, apertava a campainha, e a pessoa berrando”, relatou.
A polícia chegou rapidamente e encontrou Vanessa caída no chão da sala. O agressor não resistiu à prisão. “Quando os policiais entraram, ela já estava lá, caída, e eu já vi que era muito sangue”, relatou o vizinho.
‘Medo e vergonha’
O namorado de Vanessa era músico e participava de eventos religiosos. Ele mantinha uma imagem pública tranquila, o que pode ter dificultado que a vítima pedisse ajuda. “Ele tocava muito bem, parecia uma pessoa calma. Mas é aquilo: quem vê cara, não vê coração”, disse uma vizinha.
Fabrício Bazé, amigo da vítima há mais de 20 anos, contou que, desde que começou o relacionamento, Vanessa passou a se afastar. “Ela era uma mulher forte e cheia de vida. Mas, depois que começou a se relacionar com ele, eu só a vi duas vezes. Ela estava mais ausente, mas nunca imaginei que estivesse passando por isso.”
Ele também relatou um episódio no Réveillon que chamou sua atenção. “Mandei mensagem pra ela e ela não respondeu. Depois, foi ele quem me mandou mensagem, dizendo que estavam com saudades. Achei estranho.”
Para Fabrício, a amiga pode ter evitado falar sobre a violência por medo e vergonha. “Isso é comum em vítimas de abuso. Elas se sentem culpadas de alguma forma e não querem compartilhar.”
Na tarde de ontem (14), o corpo de Vanessa foi velado em Três Lagoas, sua cidade natal. Entre as palavras de despedida, Walker Ricarte, irmão da jornalista, deixou transparecer toda a sua dor em um desabafo comovente. “Falar da Vanessa é falar de uma filha extremamente dedicada e exemplar. Como irmã, ela sempre foi carinhosa e presente, cuidava de mim e dos nossos pais como uma verdadeira mãezona. Como profissional, era impecável, dedicada e esforçada. É muito difícil para nós perdê-la dessa forma, brutal e violenta, sem motivo algum”, desabafou Ricarte conforme informações do site RCN67 de Três Lagoas.
Em apenas 45 dias, 1.423 medidas protetivas já foram solicitadas em MS
O ano de 2025 nem chegou a completar dois meses, mas a quantidade de medidas protetivas concedidas já chega a 1.423. Somente na Capital, o pedido cautelar soma 634 registros, e no interior o número é ainda maior, alcançando 789.
O professor da Uniderp, Rafael Sampaio, especialista em direito penal, processo penal e criminologia, explica o pedido de medida cautelar que protege as vítimas. O especialista esclarece que, assim que a medida é solicitada, o autor é notificado e, a depender do caso, é determinada uma distância mínima de 300 metros ou mais, além de outros critérios que podem ser adotados conforme as circunstâncias.
Rafael Sampaio explica que a medida é imposta ao autor de maneira gradativa: primeiro com a notificação; em seguida, caso a norma seja infringida, o próximo passo é o uso de tornozeleira; e, por último, o encarceramento.
“Tem casos que, analisando a gravidade, o delegado já pode colocar uma tornozeleira. Em outros, o delegado já pode decretar a prisão de imediato, só que depende de cada caso. Às vezes, uma denúncia que já teve uma agressão física inicialmente permite que a autoridade policial tome uma atitude mais drástica”, esclarece.
O especialista acrescenta que a medida protetiva, por vezes, não tem um prazo de validade definido. A depender da situação, se o autor não se aproximou da vítima e não infringiu nenhuma norma, a medida pode ser retirada a pedido do autor ou da vítima. Para que isso ocorra, o caso é avaliado por um juiz. Quanto à possibilidade de indeferimento da medida, o especialista esclarece que a solicitação pode ser negada caso, em audiência, seja concluído que não há elementos suficientes para justificá-la.
Inibição e controle
Para o professor, o sistema de proteção à vítima de feminicídio é eficaz, mas não extingue a violência contra a mulher. Segundo Sampaio, a violência doméstica é um fenômeno social e psicológico, e a segurança jurídica busca sua inibição e controle.
“O crime faz parte da sociedade, mas as medidas protetivas já demonstraram eficácia na diminuição dos crimes. Porque, quando a gente estuda a violência doméstica contra a mulher, analisamos um fenômeno que está inserido em um contexto social e psicológico, que chamamos de ciclo da violência. Então, a criação dessas medidas protetivas já diminuiu a violência contra a mulher ou, pelo menos, evitou a progressão dessa violência até o feminicídio. Mas falar que vai impedir, vai evitar… Infelizmente, não só a violência contra a mulher, mas a prática do crime como um todo é difícil ser erradicada”, alega.
Ciclo de violência e enfrentamento
Quando questionado sobre como a sociedade e o sistema jurídico podem atuar para prevenir casos de feminicídio, o especialista pontua que estar atento ao ciclo da violência pode ser uma solução eficaz.
“A primeira violência é uma violência verbal, depois progride para uma violência física, com pequenas agressões, e pode chegar até o feminicídio. Dentro desse ciclo da violência, muitas vezes, quando a vítima consegue pôr fim àquela relação e precisa de uma medida protetiva, ela também coloca fim nesse ciclo. Então, esse ciclo acaba não progredindo”.
Rafael Sampaio também destaca que o diálogo com a vítima pode ser fundamental. “A vítima, muitas vezes, está tão envolvida naquela situação que não percebe a violência que vem sofrendo. Porque dentro do ciclo da violência, quando acontece uma violência, o próximo passo é chamado de lua de mel, porque o agressor faz de tudo para aquela vítima, ele pede desculpa, ele pede perdão, ele compra flores, ele vai agradando, e aí vai ter o próximo caso de violência, aí ele volta para essa fase de lua de mel. Então a vítima às vezes não se enxerga nessa situação. Então a sociedade tem que tentar olhar para essa vítima, tem que tentar conversar, às vezes encaminhar para um tratamento psicológico e tudo mais, para tentar evitar essa crescente”.
Sinais de alerta em relacionamentos abusivos
Casos como o de Vanessa demonstram a importância de perceber sinais que indicam risco de violência doméstica. Especialistas alertam que algumas mudanças de comportamento podem ser indicativos de perigo:
• Afastamento de amigos e familiares;
• Hematomas ou marcas sem explicação convincente;
• Medo excessivo do parceiro e mudanças bruscas de personalidade;
• Uso constante de música alta ou outros ruídos para encobrir brigas;
• Controle sobre as finanças e restrição da liberdade da vítima.
Juiz decreta prisão preventiva
O músico Caio Cesar Nascimento passou ontem (14), por audiência de custódia, após ter permanecido em silêncio durante o interrogatório na DEAM (Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher) conforme informou as delegadas da unidade em coletiva de imprensa, e graças ao seu histórico de boletins de ocorrência anteriores, o juiz Valter Tadeu decretou a sua prisão preventiva pautado no seu nível de periculosidade e nos indícios de autoria e materialidadde. Por isso, ele deve ser transferido para uma penitenciária nos próximos dias.
Monitoramento
Estado discute a criação de um Cadastro de Agressores de Violência Doméstica e Familiar
Tramita na ALEMS (Assembleia Legislativa de Mato Grosso do Sul) o Projeto de Lei 24/2025, de autoria do deputado João Henrique (PL), que dispõe sobre o Cadastro Estadual de Agressores de Violência Doméstica e Familiar no âmbito do Estado de Mato Grosso do Sul e dá outras providências.
O cadastro será instituído com o objetivo de reunir e disponibilizar informações sobre indivíduos com histórico de violência doméstica e familiar em Mato Grosso do Sul e será alimentado com o nome completo do agressor; número do documento de identidade; Cadastro de Pessoa Física (CPF); histórico de violência doméstica; com a inclusão de boletins de ocorrência, medidas protetivas e decisões judiciais; data de condenação, se houver; status de cumprimento das medidas protetivas, incluindo tornozeleira eletrônica ou outras formas de monitoramento, entre outras informações.
“É inaceitável que, depois de ter procurado ajuda, a vítima tenha que se preocupar com a possibilidade de ser agredida novamente ou até morta. O poder público precisa parar de discursos vazios e começar a agir de verdade, com medidas concretas de proteção e segurança. Este projeto de lei visa garantir que, quando uma mulher buscar ajuda, ela seja imediatamente protegida e que o agressor seja monitorado de perto, impedido de continuar colocando em risco a vida da vítima”, justificou o deputado João Henrique.
A matéria segue para análise da CCJR (Comissão de Constituição, Justiça e Redação).
Ato pela Justiça
Para este sábado (15), o Sindjor-MS (Sindicato de Jornalistas Profissionais de Mato Grosso do Sul) realizará às 9h, no calçadão da Barão do Rio Branco com a Rua 14 de julho, o ato “Justiça por Vanessa, Basta de Feminicídio”. O protesto é um encontro com representantes de classe, poderes públicos e toda a sociedade para reivindicar providências no que tange políticas públicas no combate à violência contra a mulher e o feminicídio.
Para o presidente do Sindjor MS, Walter Gonçalves, apesar do feminicídio da jornalista Vanessa Ricarte, ocorrido na última quarta-feira (12), comover, a ocasião representa a oportunidade de envolver toda a sociedade na reivindicação de ações mais enérgicas do poder público.
“O Sindjor-MS conclama a toda a sociedade sul-mato-grossense a agir contra esse verdadeiro flagelo que é a violência contra a mulher de toda ordem: feminicídio, violência moral, sexual e física. É preciso dar um basta. Não se concebe que nos dias de hoje, e em tempo algum, tais violências ocorram. Então, é preciso que toda a sociedade reaja. E essa é a mensagem que levaremos neste ato”, ressaltou.
O sindicato e demais entidades participantes vão aproveitar a ocasião para apresentar propostas aos representantes públicos para tornar o combate à violência contra mulher mais eficiente, como o cadastro de agressores de mulheres e a criação da secretaria de mulheres.
Titular da Comissão de Ética do Sindjor-MS, Tainá Mendes Jara, alerta que o combate ao feminicídio é dever de toda a sociedade civil, mas que os jornalistas têm papel fundamental na conscientização da população e na cobrança por políticas públicas mais eficazes. “Para além da solidariedade ao caso de uma jornalista, precisamos ter profissionais comprometidos com o combate à violência, por meio de informações éticas e de qualidade, a fim de contribuir para a conscientização de todos”.
SERVIÇO: Denúncias
A denúncia é uma ferramenta fundamental para romper o ciclo da violência. Qualquer pessoa pode denunciar casos de agressão pelo telefone 180 (Central de Atendimento à Mulher) ou diretamente na delegacia da mulher.
Roberta Martins e Ana Cavalcante