Violência sexual na infância expõe feridas invisíveis e revela vulnerabilidade em MS

Foto: Nilson Figueiredo
Foto: Nilson Figueiredo

Com 937 casos, sendo 442 contra crianças, psicólogas alertam para impactos profundos e silenciosos

A vulnerabilidade social e econômica de muitas famílias em Mato Grosso do Sul tem sido usada como porta de entrada para a violência sexual contra crianças e adolescentes. Abusadores não se apresentam sempre com violência explícita, mas muitas vezes se aproveitam da carência material e afetiva. “O abusador não machuca, não assusta a criança. Ele atrai oferecendo benefícios. É uma lógica de sedução em meio à carência”, explica a psicóloga Carlota Philippsen, mestre em Psicologia e ex-integrante da DEPCA (Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente).

Carlota alerta que as consequências do abuso variam de forma brutal conforme o gênero da vítima. “Quando é uma garota, ela vai provavelmente ficar traumatizada. Quando é um menino, provavelmente ele vai reproduzir violências.” A declaração direta reflete o impacto geracional da violência não tratada — um ciclo que se perpetua se não houver atenção imediata à saúde mental infantil.

De acordo com a Sejusp (Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública), até esta sexta-feira (27), foram registrados 937 casos de estupro de vulnerável em Mato Grosso do Sul. Entre as vítimas, 442 são crianças de 0 a 11 anos e 364 são adolescentes de 12 a 17 anos, representando 86% das ocorrências.

Somente em Campo Grande, já são 267 casos este ano, sendo 223 do sexo feminino e 39 do sexo masculino. A maioria envolve crianças (125 casos) e adolescentes (87 casos), o que corresponde a 79,4% do total. O mês de junho apresentou queda nos registros, com 102 casos, o menor número do ano até agora, mas os dados seguem preocupantes.

A psicóloga clínica Carla Comin Dalpasquale reforça que a violência sexual ultrapassa o dano físico e invade o desenvolvimento emocional da vítima. “É uma invasão no imaginário infantil, que atravessa o indivíduo e deixa marcas profundas. Sempre que o mundo adulto se impõe de forma abrupta a uma criança, surgem sentimentos de culpa e medo”, diz.

Segundo ela, o papel da psicologia é restaurar à criança seu direito à ingenuidade. “O tratamento precisa ser entendido de forma individualizada. Aqui em Campo Grande temos os Caps (Centros de Atenção Psicossocial), que oferecem suporte especializado a crianças e adolescentes inclusive em situações de violência”, completa.

A maioria das vítimas estão em casa

O Boletim do Observatório da Mulher de Campo Grande, também divulgado nesta sexta-feira pela Procuradoria Especial da Mulher, reforça a gravidade do cenário: com o ano ainda pela metade, os casos de 2025 já equivalem a 37,6% do total registrado em todo o ano anterior.

A maioria das vítimas segue sendo do sexo feminino, e o lar (local que deveria ser sinônimo de proteção) ainda é o principal cenário dos abusos.

O boletim destaca ainda que os agressores, em sua maioria, são homens próximos à vítima: pais, padrastos, tios, irmãos ou conhecidos da família. O dado corrobora a urgência da escuta ativa e do fortalecimento da rede de apoio, especialmente nas escolas, onde muitas denúncias são feitas pelas próprias crianças.

Caso mais recente

A frieza dos números ganhou rosto no bairro Rita Vieira, em Campo Grande, na última quinta-feira (26). Um menino de 7 anos foi violentado por um homem conhecido na vizinhança como “Pelado”, que já havia abusado da própria sobrinha. O agressor foi preso em flagrante.

A criança brincava na rua com outras crianças quando foi atraída até uma área de mata pouco movimentada. Segundo a mãe, o homem ofereceu dinheiro, tapou a boca do menino e tentou arrastá-lo para dentro do mato. A vítima conseguiu escapar após morder o agressor e correu para casa.

“Meu filho chegou desesperado, quase sem conseguir falar. Isso acabou com a minha vida, com a minha paz, com o meu trabalho. Eles estavam brincando na frente de casa, perto dos meus olhos, e ele chegou aqui pedindo socorro”, relatou a mãe, visivelmente abalada. O menino agora passa por acompanhamento psicológico e tratamento preventivo para infecções sexualmente transmissíveis.

Ciclo de abuso exige atenção da família e do poder público

Para Carlota Philippsen, a naturalização de situações abusivas é um alerta em si. “Se a gente pensar em termos reais, todo mundo nessa vida já passou por algum tipo de abuso. Nós, mulheres, passamos. Os abusos são muito mais corriqueiros do que raros. A família precisa prestar atenção aos sinais e o poder público agir contundentemente.”

Especialistas reforçam que o silêncio da vítima pode ser o primeiro grito por socorro, e que o atendimento psicológico deve começar o quanto antes para interromper o ciclo. A resposta começa com escuta, proteção e ação imediata.

Por Suelen Morales

 

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