Violência de gênero no ambiente de trabalho é uma realidade silenciada em Campo Grande

ASSÉDIO NO TRABALHO - FOTO: NILSON FIGUEIREDO
ASSÉDIO NO TRABALHO - FOTO: NILSON FIGUEIREDO

Em diferentes profissões, assédio se faz presente na rotina diária de trabalhadoras

Mais de 1,2 milhão de mulheres são vítimas de violência de gênero todos os anos no Brasil, incluindo agressões físicas, ameaças, perseguições, violência psicológica, estupros e feminicídios. Os alarmantes números, extraídos do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2024, expõem um problema estrutural que continua a assolar a sociedade, atingindo as mulheres de forma violenta e sistemática. Estes dados não são apenas números, mas refletem a dor cotidiana de mulheres que enfrentam um ciclo de violência profundamente enraizado, exigindo uma ação urgente e transformadora em todos os níveis da sociedade.

Em entrevista ao jornal O Estado, mulheres que atuam em diferentes profissões relataram situações de violência de gênero e assédio que vivem no cotidiano, refletindo a pervasividade deste problema em diversos espaços de trabalho e na vida social.

Daniela da Silva, assistente de logística na construção civil, compartilha a dificuldade de ser uma das poucas mulheres em seu ambiente de trabalho, onde a presença masculina é predominante. “No começo, foi difícil, porque a resistência existia, mas a gente impõe um limite logo quando vê que vai começar alguma coisa”, afirmou Daniela, destacando que a chave para o respeito é se impor, sendo educada e assertiva. Embora nunca tenha sofrido assédio, ela percebe que, em um setor majoritariamente masculino, as mulheres ainda precisam constantemente reafirmar sua autoridade.

Já Vera Lúcia, frentista, enfrenta diariamente o assédio dos clientes, que frequentemente preferem ser atendidos pelas mulheres, realizando comentários e piadas desrespeitosas. “Literalmente sempre, de 100%, 90% acontece”, relatou Vera, que descreveu o assédio como uma constante, mas algo com o qual ela “já acostumou”. A naturalização desse tipo de violência no ambiente de trabalho é uma realidade para muitas mulheres, que se veem forçadas a ignorar os abusos para seguir com suas atividades.

Adriele, também frentista, compartilhou uma experiência similar, destacando que, embora a situação seja incômoda, ela tenta levar as cantadas e piadas “na esportiva”. Essa normalização do assédio sexual nas ruas e locais de trabalho é uma das manifestações mais comuns da violência de gênero, onde a mulher se vê constantemente objetificada e desrespeitada.

Essa realidade atinge até mesmo mulheres que se dedicam à defesa de outras mulheres. A advogada Maria Isabela Saldanha compartilha sua experiência sobre os desafios enfrentados pelas mulheres no meio jurídico. Ela conta como sua postura firme é frequentemente desvalorizada, sendo muitas vezes rotulada de “agressiva” simplesmente por se posicionar.

“Quando nos manifestamos com firmeza, somos descreditadas. Já vivi uma situação em que um colega tentou me interromper em uma audiência e, ao reagir, fui chamada de louca. O mais curioso é que aquele que grita e desrespeita é visto como ‘normal’, enquanto, quando somos nós a reagir, nossa postura é desqualificada.”

Em outra ocasião, um juiz tentou diminuir sua autoridade. “Ele me disse que, se eu fosse mais ‘maleável’ e ‘suave’, teria melhores resultados. Isso me deixou extremamente irritada. O homem pode ser firme, mas nós, mulheres, precisamos ser ‘suaves’.”

Maria Isabela também critica o uso do termo “pela ordem”, que, segundo ela, tem sido empregado como uma estratégia para silenciar mulheres advogadas que se impõem: “O ‘pela ordem’ se tornou uma ferramenta machista usada para combater mulheres que se posicionam.”

Esse cenário de violência é refletido em casos mais graves, como o ocorrido na madrugada de 26 de fevereiro na UPA do Bairro Universitário, em Campo Grande. Uma enfermeira foi atacada por um agressor que tentou arrastá-la para um banheiro da unidade de saúde, em uma tentativa de estupro. A vítima foi salva por colegas de trabalho que ouviram seus gritos. O caso trouxe à tona novamente a preocupação com a segurança dos profissionais de saúde e, especialmente, com a violência de gênero nos ambientes de trabalho.

O que é violência de gênero?

A violência de gênero pode ser definida como qualquer tipo de agressão física, psicológica, sexual ou simbólica contra uma pessoa devido à sua identidade de gênero ou orientação sexual. Historicamente, as mulheres são as mais atingidas por esse tipo de violência devido às relações desiguais de poder entre os gêneros. No entanto, a violência de gênero não se restringe apenas às mulheres, afetando também crianças, adolescentes e pessoas em situações de vulnerabilidade.

Tipos de violência de gênero

-Violência Física: Envolve agressões que prejudicam a integridade física da vítima, como tapas, socos, empurrões ou arremesso de objetos. Quando a violência resulta em morte, o termo utilizado é *feminicídio*.

-Violência Sexual: Qualquer ato que force uma pessoa a manter ou presenciar uma relação sexual não desejada, incluindo abuso sexual, assédio e estupro.

-Violência Psicológica: Consiste em comportamentos abusivos que afetam a saúde mental e emocional da vítima, como humilhação, chantagem emocional, ameaças e manipulação psicológica.

-Violência Simbólica: É uma forma de violência mais invisível, que ocorre por meio de expressões culturais e sociais que reforçam a desigualdade de gênero, como “mulher no volante, perigo constante” ou “foi estuprada porque estava vestindo roupa curta”.

-Violência no Âmbito do Trabalho: No ambiente profissional, as mulheres frequentemente enfrentam práticas de desqualificação e assédio, como o “mansplaining” (explicar algo para uma mulher de forma condescendente), interrupção constante de sua fala, e o roubo de suas ideias.

-Violência Virtual: Quando as mulheres são perseguidas, chantageadas ou humilhadas online, como em casos de pornografia de vingança e stalking (perseguição virtual).

-Violência Institucional: Quando agentes públicos, que deveriam proteger, submetem a vítima a procedimentos desnecessários e invasivos, perpetuando o sofrimento e revivendo a violência.

-Violência Obstétrica: Ocorre quando mulheres são desrespeitadas e humilhadas durante o trabalho de parto, sendo submetidas a procedimentos desnecessários ou cruéis.

-Violência Política: Refere-se à ação de impedir ou restringir os direitos políticos das mulheres, seja por meio de assédio, intimidação ou desqualificação em sua atuação política.

Combate a violência

A coordenadora do Nudem (Núcleo de Defesa das Mulheres), Zeliana Sabala, alerta que a violência de gênero é uma realidade constante, manifestando-se de diversas formas, como violência física, sexual, psicológica e simbólica. Ela explica que a violência de gênero é resultado de um sistema patriarcal, machista e misógino, que precisa ser combatido. “A gente vive numa sociedade patriarcal, machista, misógina, racista. A gente tem que aprender a identificar os momentos em que estamos replicando isso e fazer um esforço para que essa realidade mude”, afirmou Sabala.

A Defensoria Pública tem desempenhado um papel fundamental no apoio às vítimas de violência de gênero, oferecendo atendimento jurídico, judicial e extrajudicial para garantir o direito das mulheres à proteção e ao acesso à justiça. No entanto, a Defensoria destaca que a rede de apoio deve ser ampliada, pois a luta contra a violência de gênero exige o esforço de toda a sociedade.

Por Suelen Morales

 

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